Edição 235 | 10 Setembro 2007

Comunicação digital: poros, pesquisa e desafios

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IHU Online

Na segunda semana de maio deste ano, o antropólogo italiano Massimo Canevacci esteve na Unisinos para ministrar a aula-conferência intitulada “Audiovisualidades nas mídias e a porosidade da comunicação digital”. A IHU On-Line aproveitou e conversou com Canevacci sobre múltiplas identidades, sobre a pesquisa em relação aos bororos e os vácuos na comunicação digital. Durante a entrevista, feita pessoalmente, Canevacci falou sobre seus planos de criar um etnólogo em Second Life e, ainda, sobre a importância da pesquisa acadêmica sobre comunicação digital.

Canevacci é professor de Antropologia Cultural do Departamento de Ciências Sociais e da Comunicação da Universidade La Sapienza de Roma e editor da revista Avatar. Ele já publicou vários trabalhos sobre a realidade brasileira. É autor de livros como Antropologia da comunicação visual (Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001) e Antropologia do cinema (São Paulo: Editora Brasiliense. 1990). Confira a entrevista publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.unisinos.br/ihu), em 15-05-2007. 

IHU On-Line - O senhor viaja bastante ao Brasil. Qual é a sua definição do País?
Massimo Canevacci -
Posso dizer que aqui se faz uma política com a multiplicidade dos partidos. Por isso, é um tipo de política que não se organiza apenas no coração de um partido. Na verdade, eu gosto mais de um tipo de política que se desenvolve nos movimentos, na autonomia dos movimentos, seja individual, seja mais grupal. A reeleição do Governo Lula tem elementos interessantes, pois há uma segunda chance para tentar realizar um programa que todo mundo esperava que fosse melhor. No geral, a política externa de Lula é ótima. A interna, no entanto, é discutível.

IHU On-Line - Quais são os desafios e os "pontos altos" da pesquisa que o senhor fez sobre os bororos ?
Massimo Canevacci –
Encontrei muitos desafios, porque antes já fiz pesquisas sobre os xavantes , que são tradicionalmente inimigos do bororo. Comecei quando um grupo de bororos chegou à faculdade em que trabalho, em Roma, com o objetivo de me oferecer um presente e me convidar para visitar a aldeia deles. Então, fui lá e iniciei a tentativa de entender uma cultura diferente da dos xavantes, pois esses são bravos, guerreiros muito fortes. Os bororos me convidaram para assistir a um funeral, o momento mais criativo e extraordinário de sua cultura. Na ocasião, morreu um mulher muito importante e me convidaram, coisa muito rara, para assistir ao funeral. Então, fui a ele, o que foi um desafio muito forte para mim, uma experiência muito forte, única, e também dura, muito dura. E depois escrevi um livro que saiu na Itália há três meses atrás e espero que seja traduzido no Brasil.

Os pontos altos foram focalizar o que significa o conceito de morte numa cultura profundamente diferente da nossa. Isso se constitui, na verdade, num desafio. Agora não sei se exatamente consegui resolver esse desafio. Outro desafio foi que o antropólogo não pode interpretar outras culturas da maneira tradicional. E com os bororos  também devemos ser assim, porque eles se auto-representam. Então, o desafio para mim da auto-representação é fundamental nesse sentido, porque a interpretação de uma cultura é uma tensão, um conflito entre o antropólogo e os pertencentes àquela cultura. Eu consegui fazer isso porque organizei um grupo de pessoas com três bororos que filmavam o mesmo ritual.

O funeral

Sobre a morte, o mais impressionante foi momento final. Estávamos todos dormindo no centro da aldeia, era noite de lua cheia e só um velho bororo estava cantando com som de maracá, com três mulheres sentadas fazendo contracanto. Eu fiquei olhando e escutando, mas fiquei impressionado porque ele continuava a cantar com uma força sempre maior, sempre mais forte e eu não entendi o motivo. Quando perguntei o motivo dessa força que vinha crescendo dentro dele, entendi que ele não estava sozinho, pois estavam ali todos os mortos bororos, de todos os tempos. Quando entendi isso, tive uma sensação muito estranha.

IHU On-Line - Para o senhor, quais são os “poros” que ainda podem ser preenchidos na Comunicação Digital do mundo? E do Brasil?
Massimo Canevacci -
Na verdade, a questão da comunicação visual e digital sempre foi o assunto principal da minha pesquisa. Seja em relação a uma metrópole como São Paulo, seja na mudança tecnológica que justamente relaciona o corpo à tecnologia digital. Então, acho que a potencialidade de libertação que a cultura digital tinha, no início, agora é um pouco mais problemática, no sentido das possibilidades de desenvolver uma multiplicidade de “eus”. Afirmo isso porque na cultura digital, que é conectiva (3), não existe “nós”, e sim “eus”, à medida que cada pessoa pode desenvolvê-los no interior da própria subjetividade. Isso significa um desafio forte na tradição da identidade no sentido singular. Significa fazer uma transformação profunda de pluralizar não só um conceito, mas também uma maneira lógica, que não se deve apenas à linguagem, mas ao cotidiano também. Então, eu acho que essa possibilidade de pluralizar os “eus”, a linguagem, a identidade, as políticas, as culturas estão num momento muito difícil agora, pois há forças muito claras que estão tentando desestabelecer a ordem normativa do domínio de uma lógica e de uma política tradicional. Isso significa uma mudança profunda da política porque o contexto social favorece o sistema de mudança, e mais ainda o contexto comunicacional. Eu espero que a universidade possa favorecer um tipo de desenvolvimento da cultura digital em direção a uma libertação dos “eus”.

IHU On-Line - E como o senhor vê a pesquisa acadêmica em comunicação digital?
Massimo Canevacci -
No momento, a minha sensação é a seguinte: a de que se utiliza, infelizmente, o instrumento, a metodologia tradicional para entender uma coisa que está destruindo a metodologia tradicional. Não dá para utilizar um conceito, uma teoria, método, um paradigma baseado sobre a cultura analógica para tentar organizar a cultura digital que é totalmente diferente. Nesse sentido, muitas pesquisas parecem querer enquadrar o que está acontecendo numa moldura do passado.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a passagem do mundo televisivo para o mundo digital, comparando países que já transformaram totalmente seu sinal de transmissão televisiva e países como o Brasil, que estão em processo de transformação?
Massimo Canevacci -
Na Europa, fala-se, normalmente, de três níveis. O primeiro é relativo à TV tradicional que nós chamamos de generalista, isto é, que tem telejornal, publicidade, filme, esporte, ou seja, uma televisão que organiza um palimpsesto (4). Este tipo de televisão, em grande parte, está em crise, mas me parece que no Brasil ainda vive bem. Depois nasceram, nos últimos anos, televisões especializadas em determinados temas, como esportes, filmes, arte, e isso é interessante mas, ao mesmo tempo, se aplica a um padrão tradicional. O terceiro tipo de televisão é o da televisão digital, nas quais a pluralização é fundamental porque o financiamento para desenvolver esse tipo de televisão no mundo é agora muito barato. Sob esse ponto de vista, a idéia de linguagem deve favorecer um tipo de comunicação transcultural (5). Nesse sentido, a televisão digital é a televisão que nunca mais unificará o público da televisão tradicional.

IHU On-Line -  Como o senhor vê a etnografia em tempos tão “internéticos”?
Massimo Canevacci -
Isso é interessante porque, por exemplo, a etnografia, que antes era um método da antropologia, agora virou um método que as ciências sociais podem utilizar. Na cultura digital, eu queria fazer o seguinte: Second Life   é um espaço digital onde você cria uma avatar , uma segunda, terceira identidade, e você pode experimentar um mundo paralelo, fazendo, desse modo, uma duplicação do mundo real. O desenvolvimento de Second Life é enorme, seja como experiência de signo das pessoas, seja como economia, pois está envolvendo muito dinheiro. Então, há muitos tipos de experiência, seja de design, seja musical, corporal e também sexual. Desse modo, a minha idéia, quando voltar a Roma, é criar um etnógrafo em Second Life para fazer pesquisa, a fim de ver o que acontece.

IHU On-Line - Como a cultura se renova em tempos de comunicação cada vez mais digital?
Massimo Canevacci -
Aqui também eu queria pluralizar o conceito Inovação das culturas. Por exemplo, o indígena tinha dificuldade de utilizar a tecnologia analógica, era complexo, muito caro, e tinha uma necessidade de um contínuo ajuste. Agora a tecnologia digital favorece. Isso é extraordinário. É de uma grande importância para a cultura indígena, mas também para um tipo de juventude que, tradicionalmente, não gosta de ler e escrever e que pode desenvolver um tipo de linguagem, um tipo de cultura que é ligada à dimensão digital e assim desenvolver a leitura e a escrita com uma nova cultura. Por exemplo, um jovem de Porto Alegre pode fazer uma música, pode colocá-la no YouTube etc. Se algumas pessoas gostarem, podem modificá-la, transformá-la, tornando-a um sucesso em Roma, Nova York ou Pequim, favorecendo um tipo de mobilidade extraordinária. Acho que este lado da cultura digital acaba incluindo um sujeito que tradicionalmente era excluído da produção de cultura, podendo agora produzir.

IHU On-Line - Quais são as contribuições que Adorno e Benjamin, filósofos que na nossa última entrevista o senhor estava pesquisando, oferecem para entender as culturas contemporâneas?
Massimo Canevacci -
Essa é uma bela pergunta porque agora está saindo na Itália o meu livro, o qual espero que também seja traduzido no Brasil. Ele se chama O estupor da facticidade. O conceito desenvolvido nele foi utilizado por Adorno  para criticar um tipo de método de Walter Benjamin . Neste método, Benjamin não conseguiu sair da facticidade do objeto da sua pesquisa, das coisas da sua pesquisa e da mercadoria da sua pesquisa. Facticidade unifica objeto, coisa e mercadoria. Adorno enviou, então, a Benjamin uma carta relatando o fato. Só que Benjamin responde a Adorno, em uma outra carta extraordinária, onde ele reivindica o estupor da facticidade como a filologia da sua metodologia, que é finalizada na destruição da dimensão fetichista da mercadoria. A partir disso, eu tentei utilizar um contexto bem diferente, justamente o da cultura digital. De qualquer modo, acho que esse tipo de discussão, no final dos anos 1930, entre Adorno e Benjamin, foi o momento alto da reflexão não somente filosófica como também comunicacional e política. Então, eu tentei aplicar o estupor que a publicidade, a metrópole, a arquitetura, o design, a arte e o corpo trazem na comunicação contemporânea. E, graças a esse estupor, tento entrar no corpo disso para tentar continuar a destruir as novas formas de fetichismo.

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