Edição 234 | 03 Setembro 2007

Bonifácio: um político do Antigo Regime

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De acordo com a pesquisadora Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira, até metade do século XIX, a figura de José Bonifácio não era celebrada, devido à sua forte ligação com D. Pedro. Ela esclarece que a “construção da memória de Bonifácio”, iniciou no momento em que “agremiações republicanas paulistas, em fins do século XIX, buscaram no passado da monarquia personagens que pudessem se contrapor à figura de D. Pedro, interpretado por esses grupos como tirano e déspota”. Assim, associaram a imagem de Bonifácio à defesa da separação de Portugal e à “supressão das heranças coloniais”, explica a historiadora. Outras declarações da professora, podem ser conferidas na entrevista a seguir, realizada por e-mail.

Oliveira é graduada em História, mestre e doutora em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820/1824. É livre-docente pela USP e atualmente ela coordena o Museu Paulista.

IHU On-Line - De que maneira o Estado monárquico e a nação brasileira se constituíram entre o final do século XVIII e 1840?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
Por meio de processo histórico complexo e errático, que envolveu a sociedade em seu conjunto. Desde os fins do século XVIII, estavam em debate diferentes projetos políticos relacionados à configuração, em primeiro lugar, de um novo Império português. A vinda da Corte, em 1808, e a elevação do Brasil a Reino, em 1815, apontavam para essa possibilidade. Entretanto, pelo menos desde 1817, com a Revolução em Pernambuco  e também em Portugal, evidenciaram-se incongruências e incompatibilidade de interesses entre portugueses da América e portugueses da Europa. A separação de Portugal, contudo, não representou a vitória do projeto monárquico, tampouco a hegemonia dos grupos que defendiam uma proposta política conservadora. Pelo contrário, de 1822 a 1853, podem ser percebidos diferentes embates em torno da definição do novo governo, de quem exerceria o poder e de como a cidadania seria estabelecida. Assim, o Império do Brasil foi resultado de lutas políticas entre setores sociais diferentes (e não apenas os proprietários mais ricos e poderosos como se supõe) em torno de projetos de Estado nacional e de nação.

IHU On-Line - Qual foi a importância da figura de José Bonifácio na conquista da Independência brasileira e na constituição da "nova nação"? 
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
É importante destacar que, durante a primeira metade do século XIX, a figura de José Bonifácio não foi celebrada, em função, em grande parte, de jamais ter se desligado de D. Pedro, mesmo após a Abdicação, e de representar tradições de Antigo Regime, o que contrariava diferentes setores proprietários que, especialmente, entre 1826 e 1840, lutaram para republicanizar a monarquia. Poder-se-ia considerar sua importância como estrategista que, entre 1821 e 1822, especialmente, conseguiu negociar apoios de lideranças provinciais à separação de Portugal e à opção monárquica liderada por D. Pedro.

IHU On-Line - A participação dele contribuiu para que o processo de Independência no Brasil não passasse por uma revolução, já que ele era conservador?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
A questão é que as mais recentes vertentes interpretativas sobre o período apontam para o entendimento de que o processo de separação de Portugal, bem como a organização de um governo constitucional e representativo, no início do século XIX, teve caráter revolucionário. Representou a configuração de uma nova ordem política liberal que, conforme observado, demandou longo processo de lutas entre diferentes setores sociais que não concordavam com o perfil de Estado e de nação sinalizado pelo governo de D. Pedro e pela Carta de 1824. Assim, se a atuação de Bonifácio foi conservadora, não impediu o desencadeamento da revolução que teve em 1822 um primeiro momento, mas que se desdobrou na Abdicação e depois na Maioridade.

IHU On-Line - Podemos descrever José Bonifácio como um homem de discurso liberal e prática conservadora?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
Bonifácio, tal como os demais políticos na época, não estava isento de contradições. Entretanto, a questão é que Bonifácio era um político do Antigo Regime – atuou 36 anos na Europa como alto funcionário da monarquia portuguesa. Seria muito simplista contrapor liberal/conservador, pois são termos que podem carregar qualquer conteúdo. Era um homem preparado, culto. Percebeu com clareza que a monarquia de Antigo Regime não se sustentava e que havia conquistas da Revolução que não podiam ser desprezadas. Buscou organizar propostas que articulassem essas dimensões, tendo como pano de fundo o modo pelo qual interpretava a sociedade colonial e o jogo de forças em 1821/1822.

IHU On-Line - Como se deu a construção do mito de José Bonifácio e quais as razões que apontariam para sua preservação no imaginário político brasileiro?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
A construção da memória de Bonifácio deu-se, curiosamente, no momento em que as agremiações republicanas paulistas, em fins do século XIX, buscaram no passado da monarquia personagens que pudessem se contrapor à figura de D. Pedro, interpretado por esses grupos como tirano e déspota. Em Tiradentes projetaram ideais republicanos nos fins do século XVIII; em Bonifácio, a defesa da separação de Portugal e a supressão das heranças coloniais, por meio dos escritos em que apontou propostas reformistas no tocante aos índios, à escravidão e à distribuição da terra. Mas essas qualificações são interpretações, idealizações da história, que justificavam as lutas e campanhas republicanas.

IHU On-Line - Bonifácio foi autor de muitas propostas reformistas, e criou uma lei obrigando o reflorestamento de áreas desmatadas. Essas ações revelam que ele já previa os problemas futuros, relacionados ao meio ambiente?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
Não. Não é possível lançar para o passado questões que se delinearam muito mais recentemente. Ocorre que, no início do século XIX, as propostas atinentes à exploração dos recursos naturais – de Bonifácio e de outros políticos – visavam à modernização da produção e a perspectiva da economia brasileira concorrer no mercado internacional. Isso implicava olhar para os recursos naturais de modo a que pudessem ser explorados, mas não dizimados. Ponto essencial é a produção de açúcar: desde o século XVIII, discutia-se a adoção de medidas que evitassem o desmatamento das áreas próximas aos engenhos, com o uso do bagaço da cana no lugar da madeira para o cozimento da garapa.

IHU On-Line - O Patriarca da Independência defendia também a educação livre. Pensando na conjuntura política, econômica e social atual, as idéias de Bonifácio ainda são consideradas uma idealização distante para a população brasileira?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
Seria simplificado demais entender as propostas de Bonifácio a partir das condições atuais. Mesmo defendendo a educação livre, seu objetivo era o de que a educação pudesse disciplinar e incutir hábitos de trabalho em contingentes de população vistos por ele como vadios e indolentes.

IHU On-Line - Sobre o cultivo e a produção em pequenas e médias propriedades, Bonifácio incentivava a redistribuição de terras. Suas idéias sobre a reforma agrária brasileira continuam sendo uma utopia no contexto atual?
Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira -
Nas propostas de Bonifácio (e que não eram apenas dele) no tocante à distribuição da terra estavam implicadas duas situações: a crítica ao sistema de sesmarias e a crítica às condições de vida e de educação de contingentes de população livre, vista como indolente e improdutiva. O objetivo seria defender a legalização da propriedade da terra (e não a posse como era comum na época) e a organização de propriedades para os que efetivamente estavam dispostos a produzir para o mercado. Lembro que, na época, o latifúndio ainda não era predominante. A produção agrícola estava assentada em grande parte em mosaico de pequenas e médias propriedades, como sugere a bibliografia mais recente, o que auxilia a rever o mito de Bonifácio como precursor de “reforma agrária”.

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