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IHU Online
Pós-doutora pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), Espanha, e doutora em Ciências da Comunicação pela USP, com a tese Campos em confronto: jornalismo e movimentos sociais – As relações entre o Movimento Sem Terra e a Zero Hora, Christa é mestre em Ciência Política, pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É também autora de Campos em confronto: a terra e o texto (Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 1998) e uma das organizadoras do livro O jornalismo no Cinema (Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 2001). Confira as entrevistas concedidas por Christa Berger na 172ª edição da revista IHU On-Line, de 20 de março de 2006, sob o tema Há vida fora da Terra? As contribuições da exobiologia e na 202ª edição, de 30 de outubro de 2006, intitulada Mídia e Política.
IHU On-Line - Como se caracteriza a cultura da memória no Brasil?
Christa Berger - Penso que a questão de fundo da memória não tem especificidades nacionais. Ela se engancha nos indivíduos como necessidade humana, se articula entre a necessidade de lembrar e de esquecer, é estruturante da nossa subjetividade. Cito Alfredo Bosi , que enfatiza o lugar da linguagem para pensar a memória. “A memória articula-se formalmente e duradouramente na vida social mediante a linguagem. Pela memória, as pessoas que se ausentaram fazem-se presentes. Com o passar das gerações e das estações, esse processo cai no inconsciente lingüístico, reaflorando sempre que se faz uso da palavra que evoca e invoca. É a linguagem que permite conservar e reavivar a imagem que cada geração tem das anteriores. Memória e palavra, no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível. Eu me lembro do que não vi porque me contaram. Ao lembrar, reatualizo o passado, vejo, historio o que outros viram e me testemunharam... O diálogo com o passado torna-o presente. O pretérito passa a existir, de novo.”
Mas sua pergunta é sobre a cultura da memória. Esta sim tem a cara do País: lembrar dos traumas históricos para culpar, punir, regenerar, reparar, anistiar. O retorno do passado enquadrado na cultura de massa é um fenômeno contemporâneo e percorre os diferentes países - com mais intensidade naqueles que têm traumas para elaborar, - adquirindo características locais. No Brasil, onde a cultura tem se manifestado de forma midiática, portanto, espetacular e mercadológica, o nosso passado traumático – a ditadura militar com suas conseqüências políticas - retorna marcado pelo seu potencial de consumo.
A ascensão da memória, como manifestação cultural, política e midiática, carrega uma ambigüidade. É compromisso histórico, mas é, também, uma manifestação cultural com potencial mercadológico. E estes sentidos são muito disputados – lembrar porque não nos é permitido esquecer (compromisso da rememoração para aprender com o passado) ou lembrar para esquecer – “a amnésia feliz” como afirma Felinto , identificando-a com o discurso programático da pós-modernidade.
IHU On-Line – Qual é a importância da mídia e do jornalismo para a memória dos fatos que envolvem um país?
Christa Berger - É muito importante, porque retorna aos traumas através dos testemunhos, dá forma às lembranças e contribui com a formulação de uma política de memória, que todo país deve ter. O trabalho de memória, diz Todorov , evocando uma imagem renascentista, se submete a duas exigências: fidelidade para com o passado e utilidade no presente. E é por este ângulo que ele examina exemplos da literatura de testemunho das duas experiências de totalitarismo que marcaram o século XX: o nazismo e o stalinismo.
Para o autor, há três estágios de relação entre passado e presente, mediados por um narrador: no primeiro a relação é de testemunho, o sujeito conta o que viveu; no segundo, os narradores são os historiadores que contam o que aconteceu; no terceiro, são os comemoradores, que propõem a celebração do passado. Os dois primeiros são clássicos e já bastante compreendidos, o terceiro é fenômeno da cultura de massa e pode ser observado na monumentalização, espetacularização e museologização do passado. Acrescento um quarto estágio, que se confunde com o terceiro, pois também pertence à lógica da cultura de massa, mas dele deve ser distinguido que corresponde à narrativa dos atualizadores do passado que são os jornalistas e que encontram na imprensa seu lugar de existência.
A cultura da memória destaca o indivíduo que lembra, que pode testemunhar aquilo que viveu. O cinema e o museu exemplificam a tendência à rememoração na cultura visual e o jornalismo acompanha a cultura visual, divulgando e comentando o filme e a exposição e trazendo o testemunho (dos sobreviventes) como fonte da informação. Neste sentido, a cultura da memória se vincula ao passado através de relatos orais e ao presente pelas narrativas que se apresentam em diferentes gêneros e suportes técnicos provenientes de diversas matrizes.
Cultura de massa e memória
É na cultura de massa que o trabalho de memória acrescenta novas questões e interrogações sobre a função do passado. O método da produção jornalística garante fidelidade ao passado? Qual pode ser a utilidade da memória quando enunciada pela Indústria Cultural? Será ela comercial, política, pedagógica, ilustrada? Ou virá para ajudar a historicizar tudo, e, assim, diluí-la na vala comum das lembranças. Seguramente, estas funções se confundem e se mesclam. Zygmunt Bauman observa que os filmes produzidos pela indústria do Holocausto tiraram o tema das salas de arte e os trouxeram para os shoppings centers e, agora, os espectadores podem assistir estórias deste tema sob “uma forma saneada, esterilizada e assim, em última análise, desmobilizante e consoladora”, sem prejudicar o lanche de pipoca e refrigerante.
IHU On-Line - O que caracteriza a forma como a mídia transporta e transmite a memória pública?
Christa Berger - O jornalismo não transporta a memória pública, histórica ou coletiva de maneira inocente, mas, no enlace com um novo acontecimento, a condiciona e acomoda na sua própria estrutura e forma. Portanto, o passado, ao retornar ao presente da imprensa, é trabalho de memória, e algumas perguntas são: que memória é ativada; a que interpretação histórica corresponde; qual sua utilidade no presente; o que revelam os fatos acontecidos no passado e qual o sentido que eles adquirem quando atualizados pelo jornalismo?
Trago um exemplo da rede de sentidos que constituem o trabalho de memória e como estão em disputa a contribuição que a mídia dá para o não esquecimento e a versão conveniente que ela apresenta.
O texto promocional do DVD Anos Rebeldes, a série exibida em 1992 que contava a história de jovens que lutaram contra a ditadura militar, é exemplar da versão conveniente da Rede Globo. 1992 foi também o ano do impeachment de Collor, e muitos associaram na ocasião o engajamento dos jovens com a exibição da série.
A Globo Vídeo traz o seguinte texto no lançamento em 2003, da versão compacta da minissérie:
“E se o golpe militar não tivesse acontecido? E se a revolução sexual não estourasse? E se não existisse o Cinema Novo, a era dos Festivais e o teatro Opinião? E se não houvesse um mundo dividido entre direita e esquerda? E se rótulos como alienado, engajado, revolucionário e reacionário jamais tivessem tido peso? E se os hippies não começassem a usar calça jeans? E se a individualista Maria Lúcia jamais se apaixonasse pelo idealista João? E se a doce burguesa Heloísa não partisse para a luta armada? E se uma certa minissérie não fosse exibida em 1992, no momento em que os estudantes pintavam a cara para pedir pelo impeachment do presidente Fernando Collor?”.
Diz Bucci que duas associações merecem reparos: o lado que a Globo se coloca neste texto promocional não é o mesmo lado que estiveram seus telejornais; por outro, a associação direta de influência entre a série e o movimento dos jovens contra Collor não é tão decisivo como o texto insinua. Ou seja, narrar o passado tem implicações que só o estudo regular dá conta de observar e entender.