Edição 232 | 20 Agosto 2007

“Uma pedra irrevogável no meio da poesia brasileira”

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“Penso em Drummond atual - e moderno – pelo sentimento do mundo: problematizou os impasses do século XX, assim como as fendas de sua intimidade numa dinâmica em que dialogam a perspectiva minimalista, doméstica e íntima e a perspectiva panorâmica, capaz de vôos largos sobre a humano, ou mesmo sobre uma brasilidade difusa, mas sua – ‘nenhum Brasil existe’ e ‘acaso existirão os brasileiros’? Nisso, ele teria ido além dos ismos e do ‘sarampão’ de algumas leituras modernistas para instalar-se como pedra irrevogável no meio do caminho da poesia brasileira.” A afirmação é de Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, docente do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A entrevista foi concedida por e-mail à IHU On-Line.

Tettamanzy é graduada, mestre e doutora em Letras pela UFRGS com a tese Metamorfoses no espelho: uma leitura dos vícios nacionais no conto machadiano. É autora de inúmeros capítulos de livros e artigos especializados. Organizou a obra Tantas histórias, tantas perguntas nas Literaturas de expressão portuguesa (Porto Alegre: Evangraf, 2007).

IHU On-Line - A poesia de Drummond foi incorporada pelo povo, como parecia ser seu objetivo, em obras como Sentimento do mundo e A rosa do povo? Ele continua a ser lido e entendido por meio de versos como “E agora, José”?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
Sobretudo por sua perspectiva de poeta-cronista, Drummond foi capaz de tornar o cotidiano, os homens simples matéria de sua poesia – e também de sua reflexão. A poesia requer leitores particulares, o que não é fácil num país com baixo letramento como o nosso. Ao mesmo tempo, somos um país de musicalidade, de forte presença da oralidade – como não lembrar dos cantadores, repentistas, improvisadores que ainda persistem em espaços populares como feiras e praças brasileiras? Assim, penso que alguns versos e imagens de Drummond possam até ter sido incorporados por uma faixa mais ampla, mas não diria que tenha se tornado popular, embora tenha a possibilidade para tanto – e muitos que usam a expressão “E agora, José?” talvez ignorem de onde ela vem. É como se, parafraseando Oswald, a poesia permanecesse um biscoito fino que as massas não puderam ainda conhecer e apreciar.

IHU On-Line - Como se constitui, na poesia brasileira, a ligação entre Drummond e João Cabral de Melo Neto, visto que este foi influenciado pelo primeiro?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
A ligação mais óbvia me parece ser a “lição de coisas”, o mundo dos objetos que falam e calam em Drummond e que se tornam matéria essencial da poética de João Cabral. Embora eles possam ser apontados como exemplos cabais das duas linhagens paralelas da poesia – Drummond responderia pela linhagem confessional, e Cabral pela cerebral -, vejo também pontos de contato nos dois poetas, sobretudo pelo descritivismo do olhar para as gentes e objetos do mundo.

IHU On-Line - Muitos afirmam que em Lição de coisas Drummond quis incorporar alguns elementos da poesia concreta, o que foi negado pelo próprio poeta. Como podem ser vistas as fases na obra desse poeta?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
Desde o primeiro poema do primeiro livro, o poeta mineiro enuncia o enigma das sete faces: retoma temas e formas durante sua longa produção. Difícil encaixar em estilos ou épocas uma poética que transita da tradição à modernidade – se enuncia o berço camoniano, também aponta para o silêncio do áporo, para o silêncio de um Mallarmé. Universal e regional, Drummond passeia pelas musas da poesia, as faz descer à terra ferrugenta para depois gozar seu corpo. Tudo lhe parece humana e poeticamente passível de linguagem.

IHU On-Line - A poesia de Drummond é autobiográfica, ou apenas em algumas obras, como Boitempo? O que a torna, como alguns afirmam, histórica?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
Notoriamente em Boitempo, Drummond revisita o turbulento passado familiar, mas também as raízes senhoriais e violentas do País, sendo-lhe difícil apagar as manchas que insistem em pesar sobre as madeiras, sobre os móveis. Mas há, claro, espaço também para a doçura das compotas, dos pastos, numa singular contradição. No entanto, já o segundo poema do livro inicial é chamado de “Infância”,  e ali, com precocidade, o poeta enuncia seu destino: descobre a aventura da literatura – a sua era maior que a de Robinson Crusoé - em meio a distâncias e afetos familiares. A poesia pode, sim, ser histórica – como diria Adorno em “Lírica e sociedade”, mas o é pelas tensões que encerra em suas camadas menos visíveis, como uma corrente que força o choque de imagens e conceitos num estranhamento que é o da arte, da filosofia – o homem perplexo, imerso na circunstância mas com aspirações de ultrapassá-la.

IHU On-Line - Drummond procura a poesia pura, como um Valéry, ou sua poesia é impregnada de coloquialiade?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
Novamente, tendo a identificar as duas presenças na obra de Drummond – um apelo à comunicabilidade pelo eu lírico que passeia os olhos sobre o cotidiano, mas também uma imersão na lição que as coisas lhe oferecem – e, neste caso, manifesta-se o “claro enigma” do que parece permanecer como resíduo, como fissura ou travo na dicção melancólica, por vezes metafísica, do poeta.

IHU On-Line - Por que Drummond seria um poeta moderno, independente de ter sido um modernista? E o que ele acrescentou ao modernismo dos anos 1920?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
Penso na crítica de José Guilherme Merquior , de Luiz Costa Lima e de Antonio Carlos Secchin  como instigantes caminhos para a leitura da lírica brasileira, sobretudo na modernidade.

IHU On-Line - Por que Drummond seria um poeta moderno, independente de ter sido um modenista? E o que ele acrescentou ao modernismo dos anos 1920?
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy –
Penso em Drummond atual - e moderno – pelo sentimento do mundo: problematizou os impasses do século XX, assim como as fendas de sua intimidade numa dinâmica em que dialogam a perspectiva minimalista, doméstica e íntima e a perspectiva panorâmica, capaz de vôos largos sobre a humano, ou mesmo sobre uma brasilidade difusa, mas sua – “nenhum Brasil existe” e “acaso existirão os brasileiros”? Nisso. ele teria ido além dos ismos e do “sarampão” de algumas leituras modernistas para instalar-se como pedra irrevogável no meio do caminho da poesia brasileira.

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