Edição 232 | 20 Agosto 2007

Um enigma não revelado

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Para o historiador, poeta, ensaísta e tradutor Ronald Polito, não caberia “arriscar o esboço desse eu poético em termos, por assim dizer, existenciais. Suas grandes linhas de força, seus paroxismos, suas até mesmo manias já foram e ainda serão esquadrinhados por diversos autores. Naturalmente, sem que o enigma possa ser na íntegra revelado”. E completa: “Drummond é um poeta modernista, e é um poeta moderno, e é um poeta clássico. Ele até disse: ‘agora serei eterno’. Essa idéia não e minha, está presente na crítica”. A entrevista foi concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Polito é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com a dissertação A persistência das idéias e das formas: um estudo sobre a obra de Tomás Antônio Gonzaga. De sua produção bibliográfica sobre história, literatura e política, citamos A História do Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação historiográfica (Organizado com Carlos Fico. Ouro Preto: Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, 1992);  Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825) (Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998), com José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima); Navegações: comunicação, cultura e crise, de Aníbal Ford (Traduzido com Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999); e Um coração maior que o mundo: Tomás Antônio Gonzaga e o horizonte luso-colonial (São Paulo: Editora Globo, 2003). Preparou as seguintes edições: A Conceição: o naufrágio do Marialva, de Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo: Edusp, 1995);  Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia, de José de Santa Rita Durão (São Paulo: Martins Fontes, 2001);  Escritos antiaverroístas (1309-1311), de Ramon Llull (conhecido também como Raimundo Lúlio), traduzido com Brasília Bernardete Rosson e Sérgio Alcides (Porto Alegre: Edipucrs, 2001); O desertor, de Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Campinas: Editora da Unicamp, 2003); e Considerações sobre a nostalgia, de Joaquim Manuel de Macedo (Campinas: Editora da Unicamp, 2004). Também é poeta, autor de, entre outros, Solo (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996); De passagem (São Paulo: Nankin Editorial, 2001); e Terminal (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006). Traduziu poetas como Joan Brossa, Sylvia Plath e Pierre Reverdy (este com Júlio Castañon Guimarães). No Japão, na Tokyo University of Foreign Studies, trabalhou no Departamento de Estudos Lusos-Brasileiros. A partir de sua experiência no Japão, fez o livro de crônicas Cenas japonesas (São Paulo: Globo, 2005). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que a obra de Drummond continua tão central para se entender a poesia brasileira?
Ronald Polito –
O problema de uma pergunta como esta é seu grau de generalidade. Ou então de aposta de que seja possível armar uma equação tão mínima quanto de alta potência explicativa, coisa que só um especialista poderia arriscar. A “centralidade” que ela ocupa, sempre móvel e partilhada com alguns outros nomes que também podem ser instalados neste lugar, decorre, talvez, de Drummond ter nos legado um conjunto extenso de poemas muito bem realizados a partir de algumas das balizas da modernidade literária, horizonte ainda não ultrapassado no âmbito da criação, quanto mais da recepção. Por outro lado, há particularidades históricas que talvez esclareçam sua presença tão forte. Ele foi de tal modo entronizado no âmbito do ensino fundamental, por exemplo, pelo menos para minha geração e ainda a seguinte, que passou a se constituir numa espécie de base para a formulação e o próprio entendimento dos sentimentos e experiências do homem contemporâneo, incluindo aí suas mais diferentes circunstâncias: em seu quarto, sua cidade (próxima ou distante), seu país, no mundo, no tempo presente etc. Essa espécie de macro e micro personagem, tão bem enredado em seus jogos de decisões literárias, teve um efeito avassalador nas gerações seguintes. É todo um manancial de repente libertado, ou seja, são comportas enormes que foram abertas. De passagem, é importante notar que outras poéticas no Brasil do século XX foram ou seriam capazes de produzir efeitos similares, e diversas circunstâncias explicariam essa variedade de efeitos. No que diz respeito a Drummond, acontece algo que eu creio ser curioso. Trata-se de uma matriz muito poderosa, multifacetada, riquíssima, que vai do trivial ao erudito, da forma livre às fixas, do cotidiano ao atemporal, e, ao mesmo tempo, possui uma abertura enorme para o outro, o leitor, que participa intensamente dos processos do eu lírico. Talvez isso esclareça a força da presença da poesia de Drummond em poetas das gerações posteriores. Portanto, não me parece desinteressante o fenômeno de tantos escritores que buscaram e buscam tomar Drummond como modelo que merece ser seguido. Prefiro ressaltar que sua poética vem sendo capaz de se desdobrar criativamente nas gerações seguintes, e por razões que uma pesquisa acurada talvez pudesse apontar com precisão. Diferentemente de outras poéticas talvez mais próximas da imagem de um beco sem saída, a de Drummond é a de uma via de mão dupla. E aqui não estou fazendo um juízo de valor sobre becos sem saída, que também podem interessar.

IHU On-Line - É possível observar os acréscimos que trouxe Drummond para a primeira geração de modernistas, constituída por autores como Oswald e Mário de Andrade, Raul Bopp  etc.? Drummond seria um poeta modernista ou um poeta moderno?
Ronald Polito –
Creio que sim, que Drummond foi um leitor cuidadoso da poesia modernista, talvez particularmente da de Oswald de Andrade, ainda que fosse mais próximo de Mário. Drummond sabia trabalhar com vários campos de pesquisa poética presentes em Mário e Oswald, mas com grande autonomia de vôo: criatividade, desenvoltura, imaginário próprio. Drummond é um poeta modernista, e é um poeta moderno, e é um poeta clássico. Ele até disse: “agora serei eterno”. Essa idéia não e minha, está presente na crítica. E é dessa composição tão rica porque singular que seus poemas surgem. Portanto, com muitas especificações de uso que definem sua unicidade. Drummond é modernista em certos traços, tal como moderno, mas de determinada vertente ou tendência da modernidade literária, e suas preferências do repertório clássico também se deixam naturalmente notar ao longo da obra.

IHU On-Line - Que paralelo poderíamos traçar entre a poesia de Drummond e a história do Brasil ou do mundo, observando-se, sobretudo, os poemas de A rosa do povo?
Ronald Polito –
Digamos, como hipótese, e para me apropriar de uma palavra da pergunta, que a linha da vida de Drummond apenas tenha ficado realmente paralela à linha da história do Brasil e do mundo nos anos de A rosa do povo. E novamente, tal como antes, essas linhas tenham deixado de ficar exatamente paralelas. Mas uma análise minuciosa dos poemas do autor, do primeiro ao último, revelaria um sem-número de paralelismos entre a realização dos poemas e, digamos, fatos de âmbitos e esferas as mais diversas. A sintonia da poética de Drummond com a multiplicidade de ocorrências temporais e temporalidades é o aspecto que valeria a pena ser notado. Fatos, acontecimentos, portanto, de vários níveis, se fazem presentes no texto poético, por vezes misturados, por vezes não, do cotidiano mais comezinho ao bombástico acontecimento mundial. A história pessoal, da rua, do bairro, da cidade, do estado, do país, do continente, do mundo, da natureza, tudo isso é mobilizado pelo eu poético, e com maestria. Em A rosa do povo, trata-se de um momento privilegiado em que o poeta encena desde o cotidiano e a memória “pessoal” até a própria possibilidade da poesia e suas reações e condições de existência em relação aos acontecimentos chocantes que todos viviam ou aos personagens marcantes do período. Mas nunca um “eu” reflexivo, talvez sorumbático, que organiza poderosamente o feixe de referências, é perdido de vista. Pelo contrário, o que se busca é amplificá-lo com sua força de revolta e indignação ética.

IHU On-Line - Você concorda que a poesia drummondiana tenha passado por fases? Quais elementos, características, que a fazem tão coesa, passando do coloquialismo de Alguma poesia e Brejo das almas para as formas clássicas de Claro enigma e A vida passada a limpo?
Ronald Polito –
Já se tentou estabelecer alguns padrões de corte para o corpus drummondiano, cada um deles a seu modo esclarecedor da obra. Grandes e poucos períodos cronológicos ou fases mais numerosas. Creio, portanto, ser possível trabalhar com a idéia de que há variações ou fases ao longo do percurso do autor e de que elas podem ser denominadas e caracterizadas. Por outro lado, há também essa coesão de que fala o enunciado, algo que passa por cima de todos os livros conferindo uma complexa unidade à obra de Drummond. E não vejo problemas em se operar com as duas idéias ao mesmo tempo, tomando-se os devidos cuidados. Os elementos dessa coesão talvez sejam o que antes deixei indicado: um uso particular de traços modernos e clássicos ou a mistura de ambos. Em todas as estratégias, está subentendido em eu poético que se organiza por acúmulo e desdobramento, mesmo que por ruptura. Mas o que sobressai é a condensação. Isto pelo menos até a certa altura de sua produção poética, já que a poesia dos últimos anos e a póstuma, para mim, são menos vitais. Creio que não caberia aqui arriscar o esboço desse eu poético em termos, por assim dizer, existenciais. Suas grandes linhas de força, seus paroxismos, suas até mesmo manias já foram e ainda serão esquadrinhados por diversos autores. Naturalmente, sem que o enigma possa ser na íntegra revelado.

IHU On-Line - Alguns poemas são bastante destacados pela fortuna crítica do poeta, como “A máquina do mundo”, “E agora, José”, “Poema das sete faces”, “Áporo”. Tem algum poema ou livro em especial que destaca na obra dele?
Ronald Polito –
Parece-me que a pergunta é muito pessoal. O livro de que mais gosto é Sentimento do mundo, pelo conjunto completo, pelo “intimismo”, pelo caráter reflexivo dos poemas. Com relação aos melhores poemas, seriam muitos, alguns dos citados acima e muitos outros que considero estupendos. Mas vou chamar a atenção para um poema “periférico” porque não se faz presente entre os geralmente citados ou antologiados. Chama-se “Carta”  e é um soneto. Como há mais de um soneto com este título, transcrevo aqui o primeiro verso para quem quiser conferir: “Há muito tempo, sim, que não te escrevo”. Não apenas o poema possui um número bem elevado de recursos dos mais variados tipos, como tem uma naturalidade e clareza de enunciação que o tornam impressionante. E todos esses aspectos convivem em agudo contraste com a mensagem soturna que ele guarda.

IHU On-Line - Como vê a relação de Drummond com a crítica, como a de Mário Faustino? Mesmo introspectivo, o poeta reagiu à Geração de 45 com Claro enigma e às acusações de que não discutia poesia em Lição de coisas?
Ronald Polito –
Ao que parece, Drummond teria reagido negativamente aos comentários de Mário Faustino, o que é lamentável, mas compreensível. Lamentável porque Drummond praticamente não se manifestou de forma sistemática ao longo de sua vida sobre seus companheiros de geração ou das gerações seguintes. Seria difícil que seu silêncio fosse poupado ou não criticável. E também porque, por outro lado, quando elegeu ou elogiou alguns poetas, parece que o fez movido em grande parte por razões extraliterárias, tornando ainda mais irregular a sua presença, digamos, na cena da crítica. Outra coisa que me parece bem diversa foi sua impressionante capacidade para incorporar ou dialogar em seus poemas com questões propostas pelas gerações seguintes à sua. Com respeito à geração de 45, creio mais numa coincidência de percursos em alguns aspectos.

IHU On-Line - Tendo dado aulas no Departamento de Estudos Lusos-Brasileiro da Tokyo University of Foreign Studies, poderia afirmar se Drummond é um poeta lido mesmo no exterior?
Ronald Polito –
Posso falar apenas do que percebi no Japão. Drummond não é lido. Nenhum autor brasileiro ou escritor em língua portuguesa é lido. Porque não é traduzido, salvo exceções que confirmam a regra. Há um poema ou outro de Drummond traduzido há tempos para o japonês e nada mais. Por acaso, nos últimos anos, tive um aluno brilhante, Nobuhiro Fukushima, que defendeu dissertação de mestrado na TUFS sobre Drummond. E traduziu todo o livro Sentimento do mundo. Ainda não conseguiu publicá-lo, mesmo vindo se esforçando desde 2005. Ele se interessou tanto por Drummond que, ainda no Japão (pois depois passou dois anos no Brasil), marcou uma aula especial comigo para discutirmos só o poema “A máquina do mundo”, que ele havia lido por indicação minha com muita atenção. Posso ainda falar alguma coisa sobre as aulas que ministrei para o último ano da graduação e para os mestrandos da TUFS, com os quais li alguns poemas de Drummond. Eu escolhi principalmente os poemas pequenos e “simples” dos primeiros livros. E, não tanto por acaso, trabalhei o poema que citei acima, “Carta”, longamente, pois através dele os alunos puderam voltar a tratar de muitos aspectos do soneto, que já haviam lido em outros autores. Creio que gostaram bastante dos poemas de Drummond. Os poemas mais “modernistas” eles imediatamente identificaram com as propostas de Oswald, que eu já tinha discutido em aulas anteriores. Poemas mais meditativos e complexos, como “José” , “Carta” ou “Canção amiga”  (que também apresentei musicada por Milton Nascimento), também surtiram um forte efeito.

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