Edição 232 | 20 Agosto 2007

Separar o Drummond social do formalista é um erro trágico

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IHU Online

Na opinião de John Gledson, docente no Departamento de Estudos Hispânicos da Universidade de Liverpool, Inglaterra, não há erro mais trágico do que separar o Drummond social do formalista. Para o pesquisador britânico, “boa parte da sua grandeza reside nisso”. E acrescenta: “Evidentemente há brigas de vez em quando entre a forma e o conteúdo, mas não pode haver divórcio, senão a poesia perderia seu sentido – social e formal”. Especialista em Machado de Assis e Drummond e fluente em português, Gledson concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line.

Gledson é graduado em inglês pela Loretto School e mestre em Literatura Hispânica pela Universidade de St. Andrews, ambas instituições na Escócia. Cursou, também mestrado e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, com a dissertação The origins of Galician medieval poetry and his historical e a tese The poetry and poetics of Carlos Drummond de Andrade. É autor de, entre outros, Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade (São Paulo: Duas Cidades, 1981); Machado de Assis: ficção e História (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986); Brazil: culture and identity (Liverpool: Institute of Latin American Studies, 1994); e Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos (São Paulo: Companhia das Letras, 2003).

IHU On-Line - Quais foram as características que o atraíram na obra de Drummond para que ele fosse estudado? Você, que também escreve sobre Machado de Assis, julga que ele está para a prosa brasileira assim como Drummond está para a poesia? Quais são os elementos que esses autores teriam em comum?
John Gledson -
Acho que (entre outras coisas) foram a rebeldia (“meu anarquismo é o melhor de mim”), junto com seu oposto, uma consciência de que chega um momento em que você tem que saber que a rebeldia tem seus limites – coisas já presentes nos artigos que escreveu nos anos 1920, e que pesquisei em detalhe: o ceticismo perante a religião e os dogmatismos políticos, a honestidade, “este orgulho, esta cabeça baixa...”. Acho que desde sempre admirei a maneira de ele encarar a velhice e o envelhecimento também (já em “Dentaduras duplas” ), a atitude perante o amor presente em “Campo de flores”  por exemplo – são coisas que sempre lhe agradecerei. Não sei se Drummond e Machado  são espíritos gêmeos. Certamente, Drummond tinha um amor profundo pela obra de Machado, e um conhecimento detalhado que poucos têm. Ambos eram, obviamente, céticos, um pouco arredios, isso num país que valoriza muito o calor humano.

IHU On-Line - Críticos dizem que há um Drummond social, próximo dos problemas da vida real, e um Drummond formalista, mais voltado aos experimentos da linguagem. O senhor concorda com essa separação, que costuma ser feita na obra do autor? Ela teria passado pelo que chamamos de “fases” do escritor?
John Gledson -
Acho que não há erro mais trágico do que separar um do outro, porque justamente Drummond é uma e outra coisa ao mesmo tempo, e o social vai de mãos dadas com a atitude perante a linguagem; boa parte da sua grandeza reside nisso. Evidentemente, há brigas de vez em quando entre a forma e o conteúdo, mas não pode haver divórcio, senão a poesia perderia seu sentido – social e formal. A divisão em “fases” é outro lugar-comum, que não deixa de fazer sentido, mas que é bastante perigoso também, porque Drummond não muda por seguir qualquer moda – embora estivesse consciente dessas mudanças exteriores ao longo da vida dele –, mas por necessidades internas, que estão aí para quem quiser ler e entender. Já o disse Antonio Candido, em 1944: “Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva (...)”.

IHU On-Line - Em Claro enigma, o poeta apresenta uma epígrafe de Paul Valéry : “Les événements m’ennuient” (Os acontecimentos me entendiam). Há, nesse sentido, uma busca de Drummond pela “poesia pura”? Que relação ele estabelece, em seus escritos, com Valéry e Mallarmé ?
John Gledson -
Há um capítulo detalhado sobre isso no meu livro Influências e impasses, que é difícil resumir em poucas palavras. Vou tentar. Desde sempre – desde os anos 1920, quando já lera a ambos –, Drummond manteve uma relação de admiração e distância perante esses poetas, e outros que podemos chamar de simbolistas, de uma geração anterior à dele – Rilke , Pessoa , por exemplo. O Abbé Bremond , propagandista da poesia pura nos anos 1920, foi bem menos admirado. Drummond faz parte de uma grande geração, na poesia mundial, que se afasta desses pressupostos, embora mantendo com eles profundas ligações, como não podia deixar de ser. Quem quiser entender melhor, pode ler “Extraordinária conversa com uma senhora das minhas relações”, de Contos de aprendiz ,uma exposição do assunto em diapasão cômico.

IHU On-Line - Drummond ganha destaque popular por sua linguagem próxima do coloquial, como aquela que vemos em “No meio do caminho” e “José?”. No entanto, não residiria exatamente na mescla entre esse coloquial e um traço mais erudito (com experimentos, citações a obras como as de poetas franceses) a qualidade maior de Drummond?
John Gledson
- Concordo que é a mistura, ou melhor, a tensão entre esses e outros tons de linguagem que é uma das grandes qualidades da poesia drummondiana. Veja que insisto mais uma vez na tensão, e não na justaposição. Um dos grandes momentos dessa tensão é justamente o poema onde fala da briga diária que o poeta tem com a linguagem – o famoso “O lutador” . Nesse poema, do mesmo livro que o “coloquial” “José” , há uma série de palavras “eruditas”, que o poeta parece forçado a usar, ou que usa com – palavra-chave – ironia. Com a rima é a mesma coisa, como nos mostrou Hélcio Martins, no magistral A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade , republicado há pouco com outros ensaios dele.

IHU On-Line - Na sua visão, como se mistura o poeta, digamos, privado (da família, das memórias pessoais, da cidade antiga) com o poeta público (cronista, funcionário público)?
John Gledson -
Bem, desde o começo ele procurava juntar as duas coisas – “Confidência do itabirano”  não é só um lamento para a infância perdida, é uma referência a uma cidade que, naquele momento, estava no centro de uma polêmica sobre o uso do minério bruto em prol da nação. Na primeira versão do poema há o verso: “esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil” – em algumas publicações posteriores, ele tirou estas últimas palavras, talvez por não corresponder à situação contemporânea. Felizmente (na minha opinião) restituiu-as para a Poesia completa  definitiva. Os poemas sobre Itabira acompanham, e, no fundo, não desdizem da outra poesia dele.

IHU On-Line - A obra Lição de coisas pode ser vista como a mais experimental feita por Drummond, em razão de poemas como “Isto é aquilo”,  “A bomba”  e “Amar-amaro” , ou esta é uma tendência a se ver como ápice da modernidade e das vanguardas uma determinada poética concretista?
John Gledson -
Confesso que sempre fiquei atônito perante a tentativa dos concretistas de anexar Lição de coisas, quando é tão óbvio que “Isto é aquilo”, sobretudo, é um reconhecimento e um distanciamento dos princípios poéticos deles. As palavras, nesse poema, têm mil maneiras de se ecoar, se juntar, se afastar, pelo som, pelo sentido, justamente como em poemas como “O lutador” ou “Procura da poesia” . A visão que Drummond tinha da linguagem nunca excluiu – o que é um pouco constrangedor para muitas poéticas modernas – a emoção. “A plástica é vã, se não comove”, diz num poema de Claro enigma, se não me engano. A poesia também.

IHU On-Line - Há um possível diálogo entre poetas de língua inglesa com a obra de Drummond? Se existe, em quais autores?
John Gledson -
Recentemente, na revista Entrelivros, dediquei um pequeno artigo a este assunto, que acho fascinante, se bem que problemático. Ele disse, em certa ocasião, que o inglês era “a língua mais encantatória para mim”, mas não resta dúvida que o francês era a língua estrangeira com se sentia mais à vontade, como aliás era natural para a sua geração. Para mim, o fascinante é saber se, no afastamento de uma língua poética “poética” para outra mais prosaica e terra-a-terra, que ele e Bandeira foram os primeiros a operar, houve uma influência da “nossa” tradição, que desde os românticos busca e usa “a selection of the language really used by men”, nas famosas palavras de Wordsworth . Otto Maria Carpeaux  sugeriu uma evolução paralela ao grupo de Auden  – acho instigante a idéia. Não esqueçamos que um grande amigo, Abgar Renault , traduziu uma volume de Poetas ingleses de guerra.

IHU On-Line - O senhor nota a presença de poetas estrangeiros na poesia de Drummond? De que modo e quais seriam alguns poemas em que ela se mostra?
John Gledson -
Aqui, devo remeter novamente a Influências de impasses, onde tratei da influência passageira de muitos poetas, ou de referências a eles, e tratei detalhadamente da aproximação com Valéry, e, muito mais, com o grande poeta franco-uruguaio Jules Supervielle. Realmente aconselho a leitura do capítulo que escrevi a esse respeito, porque creio que quem nunca desconfiou dessa influência/aproximação ficará atônito, e mais do que isso, comovido. Se você compara um poema como “Nuit en moi, nuit au dehors...” com “Noturno à janela do apartamento” , você vê, como em relevo, as qualidades que juntam e separam os dois, e que revelam suas respectivas grandezas. Devo meu amor à poesia de Supervielle à revelação de Drummond. E não é, como se tende a acreditar, nenhum poeta menor – digam isso a Eliot  e Rilke, dois dos seus admiradores.

IHU On-Line - O que faz a obra de Drummond, além de sua evidente qualidade, ser tão moderna ainda hoje, 105 anos depois de seu nascimento e 20 anos depois de sua morte? Ele é muito estudado fora do Brasil?
John Gledson -
Só respondo pelos países de língua inglesa, e posso dizer que ele é pouco mais do que ignorado; só em departamentos de línguas hispânicas nas universidades, onde sem dúvida é estudado. Existe uma única boa antologia de sua poesia, americana, feita por Thomas Colchie , e incluindo traduções de Elizabeth Bishop . Contém pouco mais de 40 poemas – e é de 1986. Difícil responder à primeira parte da pergunta – as qualidades que mencionei na resposta à primeira pergunta continuam a ter sua validez. E os livros vendem, os leitores lêem, que é o que o poeta queria.

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