Edição 232 | 20 Agosto 2007

Novas estórias com e sobre Drummond

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Na crônica a seguir, enviada especialmente à IHU On-Line por Affonso Romano de Sant’Anna, ele recorda momentos de sua convivência com o poeta Carlos Drummond de Andrade, de quem foi amigo pessoal. Sant’Anna escreveu sua tese de doutorado sobre Drummond, e esta foi publicada como Drummond, o gauche no tempo (4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992).



Poeta, ensaísta, professor, cronista e jornalista, Sant’Anna teve, nos anos 1960, uma participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória. Também data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais. Como poeta e cronista, foi considerado, pela revista Imprensa, em 1990, um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país. Dirigiu o Departamento de Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) na década de 1970, organizou a “Expoesia”,  evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira e trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault. Como jornalista, trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil, Senhor, Veja, Isto É e O Estado de S. Paulo. Foi cronista da Manchete e do Jornal do Brasil. Está no jornal O Globo desde 1988. Foi considerado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond. De sua obra, composta por cerca de 30 livros de ensaios, poesia e crônicas, destacamos Que fazer de Ezra Pound? (São Paulo: Imago, 2003); Desconstruir Duchamp (Rio de Janeiro: Vieira & Leme, 2003); e A cegueira e o saber (Rio de Janeiro: Rocco, 2006). Em 24-05-2007, conduziu a conferência A autonomia do sujeito na arte, dentro da programação do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Sobre o tema, concedeu a entrevista “Pensar que o artista é mais livre que um engenheiro é uma temeridade” à edição 220 da IHU On-Line, de 21-05-2007. Na edição 228  da revista, de 16-07-2007, sobre Clarice Lispector, contribuiu com crônicas inéditas sobre a amizade e o convívio que ele e sua esposa, Marina Colasanti, mantiveram com a escritora.

Pensar que faz vinte anos que Drummond se foi. E pensar que até já comemorarmos  o centenário de seu nascimento. Embora ele ironicamente dissesse para a gente que logo que morresse seria esquecido, continua vivo, vivíssimo. E sua biografia ainda pode crescer. Estou me lembrando que numa entrevista ao Pedro Bial , o biógrafo de Drummond, José Maria Cançado , disse modestamente que o poeta era imbiografável. De fato a biografia, mesmo de um morto, está sempre em movimento, em gestação, crescendo no imaginário alheio. Enquanto houver escrita e memória, as coisas que se foram voltarão sempre.

Estava eu nesses dias lembrando-me de umas estorietas com o poeta com quem tive proximidade desde a adolescência e sobre quem já escrevi vastamente. Algumas já  narrei na crônica “Perto e longe do poeta” (Fizemos bem em resistir. Rio de Janeiro: Rocco, 1994). Estou me referindo agora a outras estórias. Por exemplo, aquela sucedida no hospital, horas antes de  ele morrer. Estava Drummond ainda meio lúcido, mas com dificuldade para falar. Sentiu aproximar-se de seu leito um dos netos que, carinhosamente, tentando amenizar a situação, começou a dizer ao avô que aquilo ia passar e que logo-logo estaria de volta à sua casa na rua Conselheiro Lafaiete.

Ouvindo aquilo e pressentindo que não era isto o que ocorreria, Drummond, que morreria horas depois, fez o último gesto irônico de sua vida. Levantou o braço e deu uma banana para a carinhosa frase do neto.

* Contou-me Candace Slater,uma brasilianista que dá aulas em Berckeley, que certa vez fora visitar o poeta. No meio da conversa, de repente, ele desferiu a frase: “Você é bonita”. Ela ficou meio sem jeito, por várias razões. Sobretudo, porque tinha uma marca no rosto, que a constrangia. A conversa continuou, Drummond pegou o telefone, conversou com Pitanguy  e Candace foi operada dali a dias.

* Contou-me Geraldo Dolino , o pintor que era muito amigo de Maria Julieta e Drummond, que quando o irmão mais velho do poeta, Altivo, morreu, Drummond sentiu necessidade de fazer algo em homenagem àquele irmão que tinha um defeito na perna. Na rua, passou por um mendigo, que lhe pedia esmola. Parou e perguntou-lhe diretamente: “Você quer uma muleta?”. O mendigo, surpreso, respondeu que sim. Mas prontamente deu-se conta de que talvez pudesse tirar mais de seu generoso doador: “Na verdade, eu precisava mesmo era de uma cadeira de rodas”, complementou.
O poeta já estava quase concordando, quando o mendigo adicionou: “Mas de preferência uma daquelas elétricas, o senhor sabe...”.

Meio impaciente, Drummond lhe disse: “Olha, é a muleta ou nada”. Ao que o outro imediamente concordou, ganhando o  presente para ele útil, e para o poeta cheio de significado simbólico.

A poesia passou lá em casa

* Um dia estava em minha casa à noitinha, quando da portaria me avisam que o “senhor Drummond” estava lá embaixo e se ele podia subir. Na hora, achei que era uma brincadeira do Yllen Kerr, que às vezes se identificava ao telefone e até pessoalmente com outro nome, de pura galhofa. Então, disse, pensando que era o Yllen, que poderia subir e continuamos, Marina [Marina Colasanti , escritora e mulher de Affonso] e eu, calmamente jantando. Eis – senão - quando, ao abrir a porta, nos deparamos com Drummond em carne e osso, portando sob os braços, como presente, um livro enorme de poemas dele ilustrado pela artista mineira Yara Tupinambá.

Entrou, conversamos mineira e cautelosamente. Ele até brincou com Alessandra, a filha menor, ainda menina. Marina até escreveu uma crônica “A poesia passou lá em casa”,  registrando o episódio.

* Quando, nos anos 1960, estava eu escrevendo a tese de doutoramento Drummond, o gauche no tempo (4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992), fui várias vezes à casa dele. Ali, em seu escritório, oferecia-me um suco de cajú ou maracujá, conversávamos e deixou que levasse emprestadas as centenas de críticas publicadas sobre ele. Tinha pastas com tudo. Até com telegramas de congratulações pela publicação de seu primeiro livro em l930. Ele guardava tudo. Surpreendeu-me ver, mais tarde, na Casa Rui Barbosa, onde estão os seus arquivos, que tivesse guardado até uma cartinha adolescente que lhe enviei quando morava em Juiz de Fora.

Quando a tese ficou pronta, mandei-a, naturalmente, para ele. Percebi, por exemplo, que ele a lera atentamente, e que dava muita importância a esse tipo de trabalho, porque mandou-me cartas dando as fontes do poema da “Moça fantasma” ou explicando que o poema intitulado “Maud” era uma homenagem à amante de Enrico Bianco, que morrera num desastre aéreo. Também, depois da leitura da análise que fiz de “A bruxa”, fez uma correção de um “nesse” por “neste” no poema. E como eu havia notado que, no poema “Isto é aquilo”  , a segunda estrofe só tinha nove versos, enquanto as demais tinham dez, numa carta de 23.2.1970 explicava e acrescentava: “Para aquele vazio da segunda estrofe de ‘Isto é aquilo’, descoberto por você (eu nunca havia reparado na mutilação em jornal e depois em livro), providenciei este enchimento {último verso}:  “o boliche e o relincho”.

* Ele havia, portanto, lido atentamente a tese. Comentando o livro, me dissera: ”Mas você me desaparafusou todo”.

* Quando o livro mereceu os quatro prêmios nacionais de ensaio, Drummond foi o primeiro que me telefonava cumprimentando e às vezes me comunicando, antes que eu recebesse oficialmente o resultado.

Por outro lado, quando o livro foi publicado, como sucede com os autores, passei por uma livraria no centro do Rio e resolvi indagar se meu livro estava lá a venda. “Acabou, disse-me o livreiro. O poeta esteve aqui e comprou os 10 últimos exemplares”.

* Ao chegar dos Estados Unidos e ir dirigir a pós-gradução de Letras na PUC-Rio, fiz com os especialistas em computação daquela universidade um tratamento estatístico dos dados que havia levantado em minha tese. Eles conseguiram fazer vários gráficos e curvas que comprovavam visualmente os traços metafísicos da poesia de Drummond. Na ocasição, mandei para ele algumas fichas perfuradas (era assim o computador da época) em que apareciam seus textos trabalhados.
Espantado,  ele até se divertiu com o fato.

* Meticuloso e implacável revisor, certa vez o leitor Messias Amaral dos Santos deixou com ele a edição da Nova Aguilar para autografar. Não apenas a autografou, mas fez-lhe um poema-dedicatória e ainda corrigiu todos os erros da edição. Já com a professora Clarice Fukelman aconteceu de Drummond dar-lhe dezenas de livros para um trabalho de leitura que fazia com presos e pobres. Entre esses livros, estava a edição das poesia de Dante Milano  - poeta que ele admirava - com uma série de correções que ele pacientemente fizera.

Prêmio Nobel

* Quando eu fazia crítica semanal da Veja (nos anos 1970), Mino Carta  me ligou certa feita para saber como se poderia ter contato com o poeta, pois notícias vindas da Europa diziam que ele era forte candidato ao Nobel. Pedia-me que intercedesse para que o poeta desse uma entrevista preparatória. Constrangido, liguei para ele, expliquei a situação. Ele ouviu-me reticentemente. E, fosse para se proteger de alguma maneira ou não se expor, recusou-se a dar a entrevista. E, como se sabe, mais uma vez o Nobel não lhe foi dado. Ele bem poderia dizer ironicamente como Borges  nessa ocasião: “Não conceder-me o Nobel é uma velha tradição nórdica”.

* O poeta ficava colado ao seu telefone, como se não tivesse sido ele o autor daquele verso: “ao telefone perdeste muito tempo de semear”. Como ele se sentia protegido pelo telefone, mais à vontade, falava mais. A romancista Ruth Lauss confessou-me que gravava as conversas que tinha com ele.

Uma de suas namoradas, que conversava sempre com ele em torno da meia-noite, por telefone, me disse que foi para ela que ele fez um poema sobre o amor por telefone.

* Quando a Mangueira resolveu tomar a sua obra e biografia como tema do desfile de 1987 e fui convidado para desfilar na Comissão de Frente, ao lado da velha guarda da escola e de sambistas famosos, conversamos algumas vezes por telefone. Claro que ele não compareceu ao desfile, mas no dia seguinte me ligou para comentar e dizer de seu agradecimento pela lembrança.

* No princípio dos anos 90, alguns anos depois de sua morte, fui convidado para estar na banca de mais uma tese sobre Drummond. Mas não era uma tese qualquer. Era um trabalho escrito por Maria Lucia Pazzo Ferreira, sobre o erotismo em Drummond. Mas mais que isto, era uma tese em que o poeta havia sido co-orientador, pois, enquanto vivo, era muito amigo da autora e deu-lhe várias sugestões de leitura teórica sobre o assunto, indicando fontes para enfocar este assunto em sua obra.
Nessa ocasião, eu dirigia a Biblioteca Nacional e consegui para a instituição a doação das cartas que foram trocadas entre o poeta e a autora da tese.

* Sensação realmente estranha, estapafúrdia, ambígua e perfeitamente normal, no entanto, tive poucos dias antes da morte do poeta. Ele já estivera internado antes da morte de Maria Julieta. E a imprensa, prevendo que ele poderia morrer a qualquer momento, adiantava o obituário. É assim que a imprensa trabalha. Essas páginas, todas escritas recentemente sobre o Betinho, por exemplo, estavam escritas bem antes, creiam-me. Os jornais guardam obituários dos candidatos à morte. Às vezes, são pegos de surpresa. Mas querm tiver interesse e amigos nos jornais deveria até pedir para ler o que vão dizer após sua morte.

Ora, eu havia substituído Drummond como cronista no Jornal do Brasil , e lá o Zuenir  Ventura , que dirigia o Caderno B, pediu-me que fizesse um ensaio sobre o poeta, porque ele poderia morrer a qualquer hora. Estranha, estapafúrfia, ambíngua e perfeitamente normal a situação. Ele vivo no seu apartamento e eu no meu, escrevendo o texto para após sua morte.

Acontece a morte de Maria Julieta. Encontro-me com ele no velório. Ele vivo e o jornal já com o texto sobre ele morto, não se sabia para quando. Pensei, deveria dar para ele ler. Ia ser engraçado. Ler vivo o que sobre ele se publicaria depois de morto.

Após sua morte, um dia recebo o telefonema de uma ex-aluna, dizendo-me que Drummond aparecera numa sessão espírita e que havia mandado dois recados. Ouvi-os. Um era para Dona Dolores: que dissesse a ela para não se preocupar porque ele estava muito bem. E pronunciava  a palavra - GOVENA, pedindo que a transmitisse à Dolores, que ela saberia o que era aquilo.
Quanto a mim, dizia a amiga espírita, ele mandava dizer que o que mais gostara fora o título daquele meu  texto  estapafúrdio, estranho, ambíguo e normal, que  o jornal publicara: “Vai, Carlos, ser gauche na eternidade”.

Fiquei muito preocupado. Pois se, do outro lado da vida, as pessoas têm que continuar a ler jornal, isso é um mau sinal.

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