Edição 228 | 16 Julho 2007

Filme da semana: Baixio das bestas

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IHU Online

Os filmes comentados nessa edição foram vistos por algum(a) colega do IHU.

Nome: Baixio das Bestas
Cor filmagem: Colorida
Origem: Brasil
Ano produção: 2006
Gênero: Drama
Duração: 80 min
Classificação: 18 anos
Direção: Cláudio Assis
Elenco: Dira Paes, Caio Blat, Matheus Nachtergaele, Hermila Guedes, Marcélia Cartaxo, Fernando Teixeira, Mariah Teixeira, Irandhir Santos 

 
Sinopse:
No agreste pernambucano, a exploração e violência contra as mulheres domina. Todas as noites, um avô desnuda a própria neta, de 16 anos, num posto abandonado para que um grupo de voyeurs, que inclui agroboys e caminhoneiros, lhe pague para admirá-la. Alguns dos mesmos homens freqüentam o bordel, onde não hesitarão em estuprar brutalmente uma das prostitutas.

"Baixio" é sobre impunidade, diz diretor

A seguir reproduzimos crítica publicada pela Folha de São Paulo em 11-05-2007. O texto é de Silvana Arantes. Para Cláudio Assis, trama de seu longa "Baixio das Bestas" não oferece redenção, por ser "honesta com a nossa aldeia".

Baixio das bestas, segundo longa do pernambucano Cláudio Assis, que estréia hoje em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, começa com o prenúncio de uma decomposição: "Há quem diga que o tempo vence no fim. Um dia ele engole a usina, como engole a ti e a mim".

As imagens sob o texto são de Menino de engenho (1965), de Walter Lima Jr., com o qual Assis, 46, faz uma ponte temática: retoma o universo usineiro, para retratá-lo com as tintas dos anos 2000, envolto em decadência e exploração-não só nas relações de trabalho.

Baixio das bestas saiu vencedor do Festival de Brasília, em 2006, sob aplausos e vaias. Também foram da atração à repulsa as reações ao longa anterior de Assis, Amarelo manga (2003). O diretor diz não se incomodar com a desaprovação. "Incomodou-se? Vaie mesmo", afirma, repisando uma tese de seu filme: "No cinema pode tudo!". E provoca, na entrevista: "Pode fazer esses filmes idiotas que as pessoas fazem".

Folha - Baixio das bestas é um filme sobre as mulheres ou um filme sobre como os homens as tratam?
Cláudio Assis -
É um filme que trata da violência da sociedade contra as mulheres. No fundo, é sobre a impunidade. Não apresenta redenção, porque estamos sendo honestos com nossa aldeia. O Brasil é um país de impunidade, no Legislativo, no Judiciário, nas relações humanas.

Folha - Você aparece numa cena do filme tratando a garota prostituída como um eventual cliente. Não acha que isso pode ser interpretado como reforço ao comportamento repulsivo dos personagens?
Cláudio Assis -
Por que só o ator pode dar a cara a bater, sendo um filho da puta? Eu não? O fato é que, quando uma pessoa quer massacrar outra, tudo é pretexto. [O cineasta inglês Alfred] Hitchcock fez isso a vida toda e ninguém disse que ele estava reforçando nada. Não há nada mais violento que os filmes de Tarantino, e aqui ele é “cult”. Se eu demonstro uma realidade, sou tachado de ultraviolento.

Folha - Baixio das bestas transcorre durante um ciclo de cultivo de cana. A usina deixa o lugar malcheiroso, e um personagem teme que ela elimine o maracatu. Essa é a forma de o filme se inserir na discussão sobre o Brasil e os biocombustíveis?
Cláudio Assis -
Claro que sim. O [presidente dos EUA [George W.] Bush veio ao Brasil, mandar plantar cana. Não para amanhã, mas para daqui a 50 anos, porque vai faltar petróleo para eles. O cara está se preparando para resolver o problema deles. E todo mundo vai plantar. A história da cana-de-açúcar se confunde com a do Brasil. Foi nossa primeira cultura para exportação. Ela é um câncer da terra e das relações humanas. Bush manda fazer e vamos fazer? Perpetuar mais séculos de miséria para o povo? É isso? É uma pergunta que faço. Ele está sendo garoto-propaganda do meu filme, porque é a própria encarnação da besta-fera.

Folha - O personagem de Matheus Nachtergaele afirma que o bom do cinema é "poder tudo". Mas a frase é dita num cinema desativado. Como deve ser interpretada?
Cláudio Assis -
É uma metáfora. No cinema você pode fazer esses filmes idiotas que as pessoas fazem, que são um lixo, que viciam o olhar, que fazem as pessoas não pensar. Você pode. É ficção e pode ser documentário. Cada um faz o seu cinema.

Folha - Você diz que não há redenção em Baixio das bestas. A cena em que o maracatu derruba um personagem sugere que a arte, em vez de redimir, pode matar?
Cláudio Assis -
Ali é uma alegoria. Você não sabe se ele morreu, se ele encantou. A cultura popular pode ter esse papel. É o que tem de bom dentro daquele inferno - o maracatu, que vem dos escravos. Foram os negros que fizeram o maracatu. Criaram a nação deles, com um rei, uma rainha e os caboclos de lança, que defendem o seu universo.

 

Diretor mergulha na brutalidade e, com grande marca pessoal, ilumina o humano

Confira, abaixo, o texto de Pedro Butcher, publicado pela Folha de São Paulo em 11-05-2007.

O universo dos filmes de Cláudio Assis é sórdido -mas nem por isso é desumano. Ao contrário: Assis tem coragem de iluminar áreas sombrias do homem, negligenciadas pelo cinema, com uma marca extremamente pessoal.

Amarelo manga pintava um anticartão-postal de Recife, oscilando entre a autenticidade e a caricatura. Baixio das bestas, ainda que seduzido pela estetização, vai mais longe.

No cenário da Zona da Mata de Pernambuco, em meio às plantações de cana que geram riqueza e exploração extremas, Baixio... desfila seu painel humano. São relações predatórias, quando não sádicas. Um tipo de exercício de poder que se espalha no cotidiano e termina em brutalidade.
A brutalidade pode vir do discurso: as palavras, ácidas, saem para machucar, não raro com humor.
Aí, o filme flerta com a graça fácil, mas que logo acaba.

A exploração sexual é a conseqüência primeira desse tipo de relação humana que subjuga o corpo; as mulheres, as maiores vítimas. Essa exploração está no trabalho, mas se infiltra entre todos os tipos de relação.

O sexo, como efeito do poder sobre o corpo, é o foco: há o velho que explora a nudez da neta menor de idade, os freqüentadores do puteiro que se acham no direito de fazer o que quiserem com as prostitutas. O dinheiro é o personagem invisível: é o elemento de corrupção e desumanização.
Para tornar esse universo crível, Assis conta com um elenco de primeira -com destaque para Fernando Teixeira, como o velho explorador, e Caio Blat, estudante que passa os fins de semana com a família. Blat vive um bom ano após atuações marcantes em Batismo de sangue e Proibido proibir.

Em Baixio..., Assis caminha por um terreno pelo qual outros cineastas brasileiros já se aventuraram, como Roberto Moreira, em Contra todos, e Sérgio Bianchi, em Cronicamente inviável. Mas Assis parece ser o que mais fielmente enfrenta a sordidez como um universo a ser encarado, e não criticado de fora. É pessimista pelo que vê e não pelo que, simplesmente, despreza.


Universo em que mais fortes devoram mais fracos é olhado de fora por Assis

Confira, a seguir, o texto de Sérgio Rizzo, publicado pela Folha de São Paulo em 11-05-2007.

Baixio das bestas confirma o que Amarelo manga (2002) já havia demonstrado: no cenário de pasmaceira dominante do atual cinema brasileiro de ficção, é natural que se acompanhe de perto, e com interesse, a parceria de inconfundível personalidade entre o diretor Cláudio Assis e o roteirista Hilton Lacerda - que também colaborou em Baile perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e Árido movie (2004), de Ferreira.

Em Amarelo manga, ao menos duas vigas sustentavam a busca por uma abordagem de risco: o feixe de personagens atípicos, comprimidos em panela de pressão que parece o tempo todo prestes a explodir, com uma série de dramas interligados pelo fio um tanto esgarçado do acaso; e o rigoroso tratamento estético - com ênfase na fotografia de Walter Carvalho e na direção de arte de Renata Pinheiro - que procurava integrar o conjunto.

Baixio... reúne o mesmo núcleo de colaboradores (reforçado pelo operador de câmera Lula Carvalho e anabolizado pela filmagem em esplendoroso super 35 mm) e radicaliza as duas coordenadas: a beleza da textura e dos enquadramentos serve ao horror da sociedade de consumo em estado bruto, sem perspectivas - certa miséria existencial que leva a um desenho do mundo como uma gaiola em que os mais fortes devoram os mais fracos, mas continuam presos ali.

Cria-se, no entanto, um ruído: esse universo de barbárie não é exposto de dentro, pelas suas próprias entranhas, mas de fora, por um olhar que se apresenta como estrangeiro e, nas cenas de violência sexual contra mulheres, um tanto voyeurístico, abdicando do poder de sugestão das imagens em nome da crueza descritiva.

A opção distancia Baixio das bestas de um filme admirável com o qual mantém parentesco formal e de visão de mundo: A humanidade (1999), do francês Bruno Dumont - que, ao mergulhar em uma cidade no meio do nada onde vive um infanticida, potencializa o horror por abordá-lo via elipse e, longe do escândalo fácil, obtém resultado devastador.

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