Edição 228 | 16 Julho 2007

Por que a pena

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Para Clarice Lispector

Era noite de Ano-bom e quanta angústia no coração. Sim, estava em casa de amigos. Sim, tinha escapado à humilhação de ficar sozinha no seu apartamento, naquele apartamento capaz de em outros dias abrigá-la, ninho de livros, quadros e pontas de cigarros, mas que no último dia do ano, sabia por experiência anterior, podia tornar-se tão dolorosamente alheio quanto um quarto de hospital ou um hospício. Sim, os amigos lhe queriam bem e uma toalha de renda branca sobre a mesa prenunciava farturas. Mas o bem que ela queria aos amigos não bastava para aquecê-la, e outras eram as iguarias de que tinha fome.

Saiu. Três degraus externos na casa de vila. Sentou-se no primeiro. A noite quente, sem cheiros que usurpassem o do seu próprio corpo. A noite habitada pelos sons de festa vindos das outras casas, as outras casas todas daquela cidade de incontáveis casas. Só algumas apagadas, como a sua.
Queixo nas mãos, nas mãos que sangravam invisíveis acolhendo mais que o queixo sua alma ferida, olhou os pés. Lavados de toda poeira, ninguém diria que vinham de tão longe, que haviam caminhado sobre as pedras cortantes na aridez e no deserto. Eram pés citadinos cobertos pelas tiras das sandálias. Só isso. Unhas cortadas e passado nenhum.

Havia seguido o seu Senhor sem ouvir-lhe a palavra, acreditando traçar seu próprio rumo. E agora, só agora, tão distante das colinas da Galiléia, buscava em si a memória da Sua voz e nada ouvia.
Um rojão estourou em alguma parte.

– Senhor - disse ela, envergonhada de falar sozinha quando todos cantavam. - Senhor - repetiu, paciente no sofrer, para que Ele tivesse o tempo de aceitá-la em sua atenção - se há algum sentido nesta minha dor, se você existe, dê-me um sinal.

E deixou-se ficar no colo da noite, crucificada de solidão.

Em alguma parte alguém riscou um fósforo. Estrelas de artifício acenderam a noite. Sobressaltou-se, voltada para o céu. Nem ouviu o farfalhar das asas. Virou a cabeça. Um pombo, vindo talvez de um dos telhados, pousou diante dela. Um pombo apenas, não um anjo. Um pombo branco. Que se pôs a ciscar na calçada à procura de migalhas.

E passada uma semana, porque o ar parecia vir de tão longe que ela quase o puxava para a garganta, como a uma corda, porque não encontrava nos dias nenhuma iluminação, decidiu consultar sua cartomante. Marcou hora pelo telefone. Tratou com um táxi, o subúrbio era longe. O carro ficou esperando na porta enquanto ela se consultava.

Demorou. A conversa, antes que partisse o baralho com o mesmo gesto sem retorno com que se abre uma porta, alongava-se rebordando inutilidades. E mesmo depois, as cartas abertas na mesa, fechadas na mão, embaralhadas, partidas, novamente abertas e dispostas na secreta escrita que só a outra sabia ler, comiam o tempo. O cafezinho da garrafa térmica, o copo d’água sobre o pires branco. Nada tinha pressa naquela sala onde o que estava adiante já havia chegado. Elogiou o pote de begônias antes de sair. Sorriu mais uma vez virando a cabeça. E eis que estava na rua, sol quente marcando com sua sombra a hora exata, nem antes. Nem depois.

No carro, perturbada como que a cartomante lhe dissera - palavras tantas que já se atropelavam e empalideciam em sua memória -, desarvorada pela intimidade, tão maior que sua própria, com que a outra transitava no seu passado e futuro, deixou pender cabeça longamente, sem olhar além do vidro fechado.

Levantou-a num sinal, em rua que seria incapaz de reconhecer. O seu olhar até então cego ao que acontecia lá fora despertou, subitamente atraído. E atravessando a calçada por entre os passantes, varando a vitrina sem tomar conhecimento dos reflexos e escritas, apossou-se de um objeto exposto ao fundo.

- Pare - gritou ela em voz baixa para o motorista, seu corpo protendido em direção à rua.
Saltou, entrou na loja.

Era uma espécie de fruteira de louça, de pé torneado, enfeitado de pequenas flores rosadas, em relevo. E pousados naqueles que seriam o quatro cantos se apenas a fruteira não fosse redonda, quatro pombos brancos debruçavam-se como se bebessem a uma fonte.

Afastados os livros, limpa a mesa que não era de canto, que não era de centro, mas que estava ali entre a poltrona e o sofá, a fruteira encontrou seu novo lugar. E a louça, sobre o escuro tampo, pareceu ainda mais branca e delicada do que havia sido na loja.

Olhando-a, orgulhava-se de ter ouvido o chamado, de ter atendido a silenciosa voz que a convocava do fundo da vitrina. Mas, parados na delicada postura, os pombos não lhe traziam nenhuma resposta. E se a apaziguavam no final da tarde, quando sentada na poltrona evitava acender a luz colhendo apenas aquela que se coagulava no côncavo da louça, não eram suficientes para impedir a lenta rendição de seus poros veias e vasos que, negando-lhe a mínima defesa, pareciam abrir-se, entregando-a inteira ao silêncio.

Até que uma tarde, sentindo-se esvair como se só casca lhe restasse, como se ela fosse somente o invólucro de uma grande ferida, “preciso ir ao médico”, pensou com a mesma amedrontada esperança com que alcançava o interruptor.

Percebeu que haviam gradeado o jardim público ao saltar da condução, indecisa entre a pura surpresa e a indignação. Rejeitou ambas. Não havia por que se surpreender, jardins são gradeados no mundo inteiro. Nem com o que se indignar, as grades não estavam ali para tirar liberdade, mas para garantir segurança. E porque podia fazê-lo sem medo de ser assaltada naquele bairro central onde se sentia tão diferente, decidiu atravessar o jardim, no caminho para o consultório.

As aléias eram largas, o saibro entrava pelas sandálias intrometendo-se entre o couro e a delicada sola do pé. O pouco sol que passava através das copas espessas desenhava manchas sobre o chão, que se repetiam sobre sua pele, sua roupa, mimetizando-a, folha entre folhas, sapo entre sapos. E no entanto. Ouviu um pássaro, o ranger dos próprios pés. O barulho da cidade havia ficado lá fora, retido pelas grades. Parou um instante procurando o lenço na bolsa, deveria ter bebido antes de sair, o dia estava tão abafado e ela se cansava à toa ultimamente.

Dois homens sentados num banco riram alto, ela estremeceu. Não sentaria. Havia um velho derreado no banco mais à frente. Afastou-se temendo o cheiro da morte. Faltava pouco para chegar, já podia ver o portão aberto. Mas uma súbita vertigem a fez parar. Os olhos semicerrados, tateou com a mão erguida o tronco de uma árvore. Apoiou-se nele, dedos abertos, testa sobre os dedos, cabeça baixa de náusea, e no coração a pergunta: “Senhor, Senhor, por que o vinagre?”.

Como uma folha que cai, alguma coisa veio volteando do alto, roçou-lhe os cabelos, esgueirou-se entre o braço e a cabeça, pousou no chão. E no chão ela a viu, branca pena de pombo junto ao seu pé cansado.

Que fresca e limpa era a cadeira do consultório depois de toda aquela sufocante poeira. Que tranqüilizador o médico com suas mãos rosadas cheirando a sabonete, sua fala acolchoada por aquela risonha segurança dizendo-lhe que não, não havia nada, um pouco de cansaço talvez, o calor antes das chuvas que se prenunciavam, repouso seria o suficiente, repouso e distrair-se.
Estava tão grata que a distração lhe pareceu possível. Sairia, compraria uma saia nova, talvez voltasse a usar saltos altos, mulher igual a todas as mulheres boca de batom e seios, salva pela ciência.

O médico atrás da mesa sorriu novamente para ela, cabeça enviesada, mais amplo agora o sorriso. As mãos rosadas pararam de brincar com a caneta, espalmaram-se sobre o tampo de vidro. E empurrando-se levemente para trás sobre a cadeira de rodízios ele anunciou cúmplice:

- D. Clarice, tenho um presente para a senhora.
Colhida entre dois dedos na gaveta, como se fosse uma flor, estendeu-lhe uma pena. Branca.

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