Edição 228 | 16 Julho 2007

A aproximação vida e obra em Clarice Lispector

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IHU Online

Lícia Manzo é roteirista de cinema, teatro e televisão e mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. Em sua pesquisa, percorreu a obra de Clarice Lispector, buscando elementos autobiográficos que pudessem explicitar como a personalidade da escritora vinha a público através de seus personagens. Nesta entrevista exclusiva à IHU On-Line, Lícia fala sobre essa característica peculiar de Clarice, conduzindo-nos pelo modo de ser único de uma autora que trabalhou pela liberdade de escrever-se a si mesma, contra toda crítica que pudesse rotulá-la possuidora de um estilo “confessional”.

A pesquisa de Lícia foi publicada com o título Era uma vez: eu – a não-ficção na obra de Clarice Lispector (Rio de Janeiro: UFJF, 2002), indicado para o Prêmio Jabuti na categoria “Melhor Ensaio”. A entrevistada é também organizadora da coletânea Outros Escritos (Rio de Janeiro: Rocco, 2005), que reúne textos inéditos de Clarice Lispector. Foi curadora do evento A paixão segundo Clarice Lispector, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 1992.

IHU On-Line - Em Clarice Lispector, é possível aproximar vida e obra?
Lícia Manzo -
Em Clarice, o difícil seria não aproximar uma coisa e outra. Apesar de ter publicado mais de vinte livros, Clarice Lispector nunca pareceu interessada em possuir uma “obra”, detestava que a chamassem de intelectual - ou até mesmo de escritora - e chega a afirmar, numa de suas crônicas, que “literatura é uma palavra detestável”. Para ela, escrever era uma extensão do ato de estar viva, e quando um jornalista (José Castello) lhe perguntou certa vez porque ela escreve, Clarice responde com outra pergunta: “Por que você bebe água?”. Clarice Lispector não escrevia, ela se escrevia - e ao lutar com a distância que a separava das palavras, embatia-se com a distância que a separava de si mesma. E é nesta medida, então, que sua ficção pode ser lida como projeto autobiográfico - ainda que jamais planejado - ou como esforço de auto-exploração, descoberta, e educação existencial. Sua literatura escapa a classificações: seria romance, ensaio, prosa, poesia, ficção, confissão? O denominador comum de sua obra parece ser apenas ela mesma: a mulher de olhar singular e sensível, repleta de intensidades e matizes, e que poderia se chamar Joana, como em Perto do coração selvagem - seu romance de estréia; G.H. - como a protagonista de seu mais célebre trabalho; ou ainda “eu”- como em Água viva, prosa poética inteiramente narrada em primeira pessoa.

IHU On-Line- Você pode falar um pouco mais sobre a idéia de uma autobiografia construída através da ficção?
Lícia Manzo -
Para Freud, toda literatura é uma regressão a serviço do ego. Harold Bloom   escreve, a partir desta observação, que pode ser difícil concordar com a sabedoria freudiana neste sentido, mas que é uma idéia sugestiva: a partir de uma narrativa ficcional, imaginar do quê, ou de quem, o autor está fugindo, ou a que estado anterior de sua vida está voltando, e por quê? Penso que esta idéia se aplica, em maior ou menor escala, a autores de diferentes temperamentos. Nelson Rodrigues , por exemplo: sua vida “escoa” para sua ficção o tempo todo: os repórteres inescrupulosos com os quais conviveu quando menino na redação do jornal de seu pai, os adúlteros criminosos, as suburbanas histéricas da rua onde morava são os mesmos que povoam suas crônicas e seu teatro, e o espanto com que testemunhou tudo isso em criança permanece intacto na dicção deste autor que se definia como um “menino que vê o mundo através do buraco da fechadura”. Ler Nelson Rodrigues é como “conhecer” Nelson Rodrigues – suas paixões, repulsas e obsessões. E sobre Clarice Lispector podemos dizer o mesmo. Caetano Veloso  escreve num artigo que “ler Clarice era como conhecer uma pessoa” - o que é uma observação muito feliz, porque Clarice era isso mesmo: ela se dava a conhecer através de sua obra. E penso que jamais optou por escrever diretamente sobre si mesma – sem a máscara das personagens – porque, segundo ela “ser escritor é não ter pudor na alma” – e ela tinha, e muito. Era uma tímida ousada, como costumava dizer - e sua ousadia a fez escrever sobre mulheres “engessadas” em papéis de mãe, esposa, dona-de-casa, enquanto procuravam ocultar a chama selvagem que ardia em seus corações de criadoras. Mulheres que ansiavam por liberdade, por expressão, por um espaço para si, para além dos filhos, maridos e obrigações domésticas, a “Room of your own”: como no célebre texto de Virginia Woolf que Clarice adorava. Como se sua timidez a incompatibilizasse com a grandeza e o alcance do que tinha a comunicar artisticamente, Clarice, me parece, ocultava-se através de tantas e tantas personagens – Ana, Laura, Lóri, G.H.–, valendo-se delas para encenar o drama de sua própria vida.

IHU On-Line - Você pode especificar com algumas passagens de sua literatura?
Lícia Manzo -
Seu romance de estréia, Perto do coração selvagem, é publicado em 1944 e coincide com seu casamento com Maury Gurgel Valente - um colega que conhecera na faculdade de direito. O descompasso da união dos dois está retratado no romance - através de Otávio e Joana, os protagonistas -, sendo ele um homem prático e sem maiores complicações existenciais, e ela uma jovem voltada para as questões do espírito.  Clarice ficaria casada com Maury por 16 anos, acompanhando-o em missão diplomática fora do Brasil por todo este tempo.  A angústia e o desconforto da nova “personagem” - Clarice Gurgel Valente -, esposa de diplomata e mãe de dois filhos, encontram-se documentados numa série de cartas enviadas à família e aos amigos neste período, e em alguns dos mais célebres contos de Laços de família - publicado logo após sua separação.  No livro, as personagens parecem todas consumidas pela mesma questão: atender ao chamado do lado selvagem e liberto da vida – representado por um búfalo, um cego, ou pela desconcertante beleza de um arranjo de flores - ou conformar-se, conter-se e ocultar-se numa identidade de “esposa que procura antes de mais nada atender às necessidades de seu lar”? Em A maçã no escuro, do mesmo período, é o protagonista Martim que deixa para trás o casamento e seu papel social de engenheiro bem sucedido, para vagar no meio deserto, para perder-se, e para ficar mudo. Clarice volta ao Brasil em 1960, aos quarenta anos - mesma idade de Martim – para, pouco tempo depois, registrar o que possivelmente experimentara nessa “região desabitada e sem palavras”, em A paixão segundo G.H., um livro estranho, sem precedentes: relato de uma mulher que, mais que buscar a transcendência, é assaltada por ela em meio à sua vida cotidiana e doméstica: uma mulher que encontra a graça e o horror de estar viva, no ato de arrumar seu apartamento e deparar-se no quarto de empregada com uma barata.  A partir de G.H., podemos dizer que Clarice prescinde dos personagens, passando a dizer “eu”, na segunda fase de sua obra - construída quase que exclusivamente em primeira pessoa. São crônicas memorialísticas e escritos confessionais – que apareceriam em sua coluna semanal no Jornal do Brasil, migrando depois para contos e romances, como Água viva e Felicidade clandestina. Clarice passa a escrever então cada vez mais liberta das “personas”, ou então assumindo, de certo modo, estar lançando mão delas: como acontece em A hora da estrela e Um sopro de vida, seus últimos trabalhos. Em ambos, Clarice lança mão de um personagem chamado “escritor”, assumindo, através dele, sua relação de amor e fastio com a literatura. Há algum tempo, li uma entrevista do escritor norte-americano Paul Auster , na qual rebatia a afirmação de que seu livro Cidade de vidro seria uma autobiografia disfarçada. Segundo Auster, no livro, o que ele tencionara fazer fora tirar seu nome da capa para inseri-lo dentro da história, abrindo paredes e expondo o encanamento do processo que o consumia como escritor e como homem. Penso que a afirmação se aplica perfeitamente ao que Clarice realizou, especialmente em seus últimos trabalhos.

IHU On-Line - A escrita então pode ser um exercício de invenção de si?
Lícia Manzo -
Em uma entrevista, quando perguntada sobre sua identificação com os personagens de A maçã no escuro, Clarice, citando Flaubert , responde: “Madame Bovary c’ est moi, quer dizer: eu sou o Martin”. É bastante claro que, através de sua escrita, ela buscava forjar uma identidade para si. Mesmo no título de meu trabalho sobre Clarice, Era uma vez: eu - que extraí de Quase de verdade, um de seus livros para crianças –, há a expressão desse paradoxo: lançar mão da ficção para dar conta da realidade, ou, através do que se fabula, esboçar um caminho para a própria existência. Em um artigo de 1975, a escritora Anaïs Nin  - que manteve um diário pessoal ao longo de 40 anos, e que se tornaria sua obra mais importante – afirma que a escrita confessional sofre com o tabu que condena o desenvolvimento pessoal e a exploração interior como manifestações narcísicas ou de um subjetivismo neurótico. Para Anaïs, a idéia equivocada de que a vida voltada para o exterior é mais importante que a descoberta ou a criação de si mesmo já foi desmentida pela desintegração da personalidade que caracteriza nossa cultura extrovertida, pela confusão e pelo caos. Gosto imensamente quando ela escreve que “a viagem interior aos labirintos do ‘eu’ confere a cada vida uma beleza e um conteúdo espiritual que estão ausentes em nossa civilização, justamente por causa dessa desconfiança em relação à subjetividade”. Clarice Lispector foi vítima deste tipo de preconceito ao longo de toda sua carreira: Perto do coração selvagem, de 1944, foi taxado por Álvaro Lins  - um dos mais importantes críticos da época - como “literatura feminina” e, em seu artigo sobre o livro, ele afirma que mulheres não parecem se ajustar muito bem a um tipo de criação literária como o romance, parecendo precisar mais “dos livros pessoais de confissões”. E o interessante é que, mesmo trinta anos depois, já consagrada, Clarice ainda era considerada por grande parte da intelectualidade brasileira como uma escritora “alienada” e desvinculada da realidade social de seu país. Pois em A hora da Estrela - seu último trabalho - Clarice produz uma narrativa social a seu modo: factual e abstrata, lírica e realista.

IHU On-Line - Além de Era uma vez: eu, você publicou, ao lado de Teresa Montero, a coletânea Outros Escritos - reunião de escritos dispersos de Clarice Lispector, tais como artigos de sua época de estudante, anotações de mãe num caderno doméstico, estudos para uma conferência etc. Em que medida esses documentos são importantes?
Lícia Manzo -
Clarice Lispector sempre reconheceu o fragmento, a anotação dispersa, o “fundo de gaveta”, como parte indissociável de sua produção literária.  Era a partir de apontamentos, num primeiro momento desconexos, que ela costumava extrair posteriormente uma unidade, transformando-os numa obra pronta e acabada.  A vida inteira Clarice seguiria assim: escrevendo em pedaços de papel, talões de cheque, guardanapos - num jorro incontrolável. No canto de página de uma revista - em seu acervo pessoal doado à Casa de Rui Barbosa -, reconhecemos sua caligrafia nervosa que anota: “Tudo me toca: vejo demais, ouço demais – tudo exige demais de mim”. Em cada um de seus escritos – seja numa anotação doméstica de conversas com seus filhos, ou num artigo acadêmico para a revista da Faculdade de Direito –, Clarice está presente, misturada a tudo: impossível encontrá-la pela metade. Olga Borelli , uma de suas melhores amigas, me disse em uma entrevista: “Ela não se violentava - sempre fazia o que tinha vontade, sem pedir licença a ninguém – era um traço de sua personalidade”. Gosto dessa observação porque me parece extensiva tanto à sua obra quanto à sua vida: a mesma autenticidade, o mesmo projeto de liberdade, a mesma singularidade desconcertante. Isso era Clarice Lispector.

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