Edição 228 | 16 Julho 2007

Clarice Lispector: uma descoberta avassaladora

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IHU Online

Eliana Yunes é professora do Departamento de Letras da PUC-Rio. Orientou teses sobre Clarice Lispector tanto na literatura adulta quanto infantil e coordena um programa de formação de leitores associado à Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio.

Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Eliana fala sobre a importância da escritora para a Literatura, fazendo um contraponto com a atividade de jornalista também exercida por Clarice: “A mulher romancista, escritora, e a jornalista trocam de posição muitas vezes”. Os temas fundamentais da obra de Clarice, assim como os reflexos de sua vida pessoal na sua escrita também são abordados pela professora, que fala, igualmente, sobre a abordagem da produção literária da escritora em sala de aula.

IHU On-Line - Passados 30 anos da morte de Clarice Lispector, qual é o lugar que ela ocupa hoje na Literatura Brasileira?
Eliana Yunes -
Se vamos considerar a crítica institucionalizada - a presença em pesquisas e em espaços de reconhecimento público no sistema literatura -, Clarice ocupa um espaço de proeminência nacional. Apesar de ser considerada uma autora difícil, porque aparentemente ensimesmada, Clarice encontrou, pouco a pouco, uma linguagem de comunicação das coisas mais profundas e densas de sua experiência de vida, isto é, encontrou um meio de colocá-las em comunicação com o público, desde um público de jornal até o público de romance.

Essa voz da Clarice, que tem a sua originalidade no solo da linguagem, acabou sendo uma voz quase que arauto de uma nova escrita capaz de traduzir o feminino não como um gênero de escrita, mas enquanto uma visão diversa que se coloca no discurso. E isso deu a ela uma dimensão internacional extraordinária. Clarice é lida do Canadá à França, da Rússia à Argentina e, por isso, esse lugar seu de proeminência nacional e internacional no que chamamos de sistema literatura contemporânea.

IHU On-Line – Qual é o tema ou os temas que movem a criação literária de Clarice Lispector?
Eliana Yunes -
O tema fundamental de Clarice é a própria linguagem. Ela explora o discurso, explora a palavra, explora suas combinações, suas fluências, suas ausências, para dizer - como ela mesma explicitava - o indizível; ou seja, atravessar a palavra para pescar a não-palavra, aquilo que não pode ser dito. Essa noção de vida que transgride os limites da experiência física, e que atravessa o psíquico e o emocional, Clarice tentou vazar com o discurso, com a palavra.  Acho que esse é o grande tema. Dentro desse tema, o tempo todo está colocada a questão do pensar e do pensar-se, do constituir-se, do tornar-se pessoa. Desde Menino a bico de pena, ela desenha essa necessidade e, ao mesmo tempo, esse contra-senso que é nos obrigar a nos tornar pessoas, quando isso significa abdicar do silêncio em que você é você mesmo, em que você não está nomeado, porque a única nomeação possível é Deus, aquele que tem nome verdadeiramente. Clarice acaba, no final do seu discurso, da sua obra, com Um sopro de vida, por concluir isso. A obra de Clarice é um crescendo. Ela começa fechada, complexa e muito sintética, amalgamada, e vai se espraiando. E, nos vazios e silêncios, ela vai recolhendo muito mais capacidade de expressão e comunicação do que inicialmente tinha.

IHU On-Line - Muito se fala do hermetismo da obra de Clarice Lispector. Na sua opinião, o que a produção literária de Clarice encarnou de sua época?
Eliana Yunes –
A obra de Clarice, que começa nos anos 1940 e que atravessa as décadas seguintes, chegando praticamente ao final do século XX, está no longo de um momento de pós-guerra em que as mulheres haviam sido chamadas ao mundo social para substituir os homens que tinham ido à luta e, assim, ocupado um espaço público. Essas mulheres, então, não querem voltar mais ao espaço doméstico. E esse espaço público inclui a reflexão sobre si mesma: o que eu sou, o que é que eu faço, por que estou aqui, qual é o meu papel, qual é o meu lugar. Não haverá mais, desde Perto do coração selvagem, uma figura feminina submissa, calada, reprimida, mas uma mulher que se perscruta, para se achar como criatura humana, como gênero humano, G.H., no meio dos homens. A obra de Clarice transita por um tempo de grandes alterações, tanto da escrita, da comunicação literária, quanto da condição feminina mesmo. E ela, sem fazer uma literatura feminista, soube colocar no romance, nos contos e nas suas crônicas, essa dimensão de um olhar novo da mulher sem abdicar do “ser humano”. Era, ao mesmo tempo, capaz de traduzir uma sensibilidade aguda das coisas; uma sensibilidade dolorida, doída, de todas as coisas. Esse percurso é o que ela acaba fazendo com sua obra, daí começar muito hermética, para ela mesma, pois tem dificuldade de se falar. De Perto do coração selvagem a Um sopro de vida há uma mudança muito grande, em que ela permanece no mesmo terreno das indagações, do exercício com a palavra até se encontrar, mas esse exercício vai se tornando mais aberto à inclusão de outros, de outras vozes e de outras escutas: Ela vai ao masculino, à 3ª pessoa, retorna à primeira, em outra dimensão.

IHU On-Line - A obra de Clarice Lispector, uma escritora ucraniana naturalizada brasileira, refletiria uma sensação de sentir-se estrangeira em relação à própria vida?
Eliana Yunes –
Pessoalmente, eu não saberia dizer o quanto essa condição de estrangeira de fato afeta ou determina um tipo de escrita em Clarice.  Acho que muito menos o fato dela ser ucraniana – porque ela chega ao Brasil praticamente recém-nascida – e muito mais essa condição judia, que é a de exilada permanente, de estar sempre procurando uma terra que não é a sua, fazem talvez, de sua escrita, uma escrita assimilada a essa busca de si mesma, de uma ancoragem que não vem do homem, que não vem do casamento, e que ela tenta colocar na família. Muitos contos dela sobre família mostram esse dilaceramento que as pessoas estão vivendo nessa época. Também o sentir-se estrangeira ao mundo não é uma novidade na literatura. A novidade é que de Clarice vem uma voz feminina que assume o estranhamento sem histeria. Clarice sempre se sentiu uma brasileira – ela reafirma isso. Mas se sente estranha ao mundo político e social que acaba vindo na diplomacia com o casamento. Ela confessa – em cartas e correspondências a Lúcio Cardoso e a outros amigos – que, muitas vezes, gostaria de abandonar esse grand monde das embaixadas, da vida social sofisticada, a fim de se recolher. Os livros dela têm uma assimilação profunda da experiência de vida que teve e traduzem isso: o quanto que Clarice gostaria de estar olhando para dentro, conversando consigo mesma e conversando com outras vozes, diferentes daquelas que a circundavam em tal contexto sociopolítico, econômico e cultural. Clarice vai descobrindo – através da literatura dela isso se percebe – que esse não-lugar no mundo é a condição humana. É como se dissesse: “Esse mundo é mesmo um desconserto, mas isso é tudo o que a gente tem para alcançar algo que valha a pena”. Então, imagino que essa travessia da Clarice seja, de novo, uma travessia de quem vive densamente o pensamento e não, necessariamente, a travessia de um apátrida ou exilado.

IHU On-Line - Clarice trabalhou como jornalista em várias ocasiões. Quanto há de jornalista na Clarice escritora e quanto há de escritora na Clarice jornalista?
Eliana Yunes –
Clarice tem uma escrita complexa, sem dúvida. Uma escrita ora extremamente sofisticada, em que a sofisticação não está na sintaxe, não está na armação da frase, mas nas imagens que ela constrói. E Clarice não abdica dessas imagens sutis e elaboradas quando ela vai ao jornalismo. Do jornalismo, do fato de ter sido cronista, ter escrito inclusive como ghost writer de outras colunistas, Clarice vai buscar uma comunicação com o público – o que, de fato, ela alcança, pelo número de cartas que recebe. Esse trato com a correspondência dos leitores no jornal vai tornando a sua capacidade de expressão cada vez mais efetiva. A palavra efetiva talvez seja forte, mas quer significar o fato de ser cada vez mais acessível a um público não habituado às densidades da sua literatura. A mulher romancista, escritora e a jornalista trocam de posição muitas vezes. Uma das coisas que se pode observar, orientando teses sobre ela, é de que muitas frases que aparecem nas crônicas reaparecem nos romances e muitas coisas que estão nos romances publicados anteriormente serão retomadas na escrita para jornal. Às vezes, são literais. A diferença é o contexto em que aparecem: suaviza quando se trata da comunicação no jornal e se adensa quando a questão aparece no romance. Ela soube aproveitar muito bem esses diferentes registros – amante da palavra, amante da linguagem – que o trato da linguagem lhe proporcionou.

IHU On-Line - Passando para a sala de aula, como é trabalhar Clarice Lispector na escola, na Universidade?
Eliana Yunes –
É possível trabalhar Clarice na escola básica porque ela escreveu alguns livros pensando no Pedro e no Paulo, seus filhos, e que são obras aparentemente muito singelas, mas extremamente sofisticadas. A Clarice escrevendo para os filhos – A mulher que matou os peixes, O mistério do coelhinho pensante, entre outros livros – lida com o imaginário forte da criança e alcança uma alteridade extraordinária de discurso.  É possível trabalhar acompanhando essas portas abertas do imaginário que ela deixa para a criança. Penso, também, que seria muito necessário que os professores de escola normal conhecessem essa literatura de Clarice, que não é mais fácil, nem mais inicial ou iniciatória, mas que, pela extensão curta, daria uma boa familiaridade com seu discurso. Na sala de aula da Universidade, Clarice é uma descoberta – uma descoberta avassaladora! Aqui me situando na condição de professor, vivendo essa experiência de trazer Clarice para o leitor, procuro fazer o percurso da escritora dos últimos livros para os primeiros. Em geral, você não consegue fazer o arco completo, mas de Um sopro de vida, passando por Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, até A paixão segundo G.H., você consegue fazer com que o aluno adentre o mundo de Clarice. Você começa com o que está aparentemente à superfície, mas quando chega no fundo, em G.H., vai ver que essa superfície está no fundo e que o profundo já estava na superfície de Clarice. Há uma leveza nos últimos livros maior que a dos livros iniciais e que por aí é mais fácil que as pessoas se enamorem de Clarice, porque ela é muito “verdadeira”. Por mais que tenhamos casos a contar sobre Clarice e que são interessantíssimos – uns desmistificadores, outros mistificadores –, ela busca a verdade, de si mesma, e nesse sentido, repito, ela é muito verdadeira. O que ela está buscando é ela mesma, o que é a alma humana, e Clarice vai alcançando o mistério nos últimos livros. Se o leitor começa por aí, vai chegar a G.H. sem achar que é uma loucura uma mulher comer uma barata.

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