Edição 228 | 16 Julho 2007

Clarice, leitora crítica

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Na década de 90, andei revirando os arquivos do extinto Instituto Nacional do Livro, que foram parar na Biblioteca Nacional, e descobri uma série de pareceres de escritores recomendando, ou não, a compra de livros para bibliotecas públicas. Ali está, sigilosamente, o que alguns de escritores realmente pensam sobre obras de seus colegas. Cheguei a copiar alguns deles, pois têm um valor crítico histórico.



De Clarice encontro três julgamentos de obras alheias. Dois são interessantes. Comentando “Roteiro poético”, de Vivaldina Queirós Martins , diz que o livro “comoverá uma empregada doméstica ou uma jovem ou senhora que vende atrás de um balcão”, mas, embora elas tenham direito de “se sentirem compreendidas e expressas”, Clarice é contra a aquisição do livro porque o INL “não pode descer a um nível tão baixo de literatura”.

Já outro parecer, de 19.11.1969, é mais curioso. Já que esse tipo de documento não quer ser um blá-blá-blá teórico, mas tem que ser claro, direto, a Clarice aborda os limites e o conflito entre a leitora e a crítica, entre a literatura mais sofisticada e a literatura mais popular. Por isto, comenta: “O açude e outras histórias”, de Salm Miranda, e “Giroflê, Giroflá”, de Cosette Alencar , assinalando: “Ao ler ambos os livros procurei manter-me numa situação de crítica, e de leitora, e não de escritora. Como escritora que sou, não gostei dos livros. Mas acontece que os livros não são publicados para escritores lerem, e sim para o público. Como escritora repugna-me o lugar-comum tão usado, por exemplo, em ‘O açude e outras estórias’. No entanto, analisando a expressão ‘lugar comum’, vê-se que este é dirigido ao homem comum, e mesmo necessário para uma comunicação imediata. E o público é, com escessões(sic), feito de homens comuns.

A trama de ambos os livros tem interesse, sendo melhor o romance ‘Giroflê, Giroflá’ de Cosette Alencar. Em ‘O açude e outras estórias’ há momentos de franco mau gosto, para mim como escritora. Mas de novo me pergunto se para um leitor comum – ávido que está de ler literatura nacional, sobre assuntos nacionais, e não só a traduzida – pergunto-me se isso terá maior importância. É preciso incrementar a produção de literatura brasileira, e não ser demasiado esnobe em relação a ela.

Nos dois livros, de repente o leitor, no caso eu, nota que está comovido. E essa qualidade de provocar emoção não é de se desprezar, pelo contrário. E vem a pergunta minha como leitor apenas: que importa o lugar-comum ou a ausência de originalidade maior, se ambos os livros tocam, como se diz, ‘nas cordas sensíveis do leitor’, estou usando um lugar-comum, eu me comuniquei. E é o que acontece com os dois livros medíocres: eles se comunicam com o leitor.

Sou portanto favorável à compra, pelo Instituto Nacional do Livro, de número de exemplares que acharem por bem determinar, certa que estou de que as livrarias do Brasil estão repletas de livros estrangeiros que não são melhores que os dois citados. – Assinado, Clarice Lispector.”

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