Edição 227 | 09 Julho 2007

A crítica de Frida à violência naturalizada contra as mulheres

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IHU Online

Na entrevista a seguir, feita por e-mail para a IHU On-Line, a pedagoga Edla Eggert, professora da Unisinos, relaciona a obra Uns quantos piquetitos, de Frida Kahlo, com a violência naturalizada à qual as mulheres daquela época e de hoje foram e são vítimas. Segundo ela, “em muitas situações, os golpes continuam sendo violentos. Em outras situações, esses golpes são mais sutis, mas continuam existindo”. Em seu ponto de vista, a construção misógina da sociedades só será desconstruída através do processo educativo.

Eggert é graduada em Pedagogia pela União das Escolas Unidas do Planalto Catarinense (Uniplac), mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo com a tese Educa-teologiza-ção: fragmentos de um discurso teológico (mulheres em busca de visibilidade através da narrativa transcriada). As questões a seguir foram baseadas no artigo inédito A apatia de quem olha: a violência naturalizada, escrito por Eggert e que fará parte da coletânea sobre Frida Kahlo, que está organizando.

Em 14-08-2003, Eggert apresentou o IHU Idéias intitulado Pomeranas, parceiras no caminho da roça: um jeito de fazer Igreja, Teologia e Educação Popular, e em 6 de março daquele ano o IHU Idéias História da participação das mulheres: desafios e impasses. Na ocasião, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, a professora Eggert, junto com a professora Clair Ribeiro Ziebell, refletiu sobre a questão de gênero. O texto desta apresentação foi publicado nos Cadernos IHU Idéias,  nº 2, O feminismo ou os feminismos: uma leitura das produções teóricas. Em 08-03-2005, Eggert palestrou no Quarta com Cultura Unisinos – IHU Debate com o tema Mulheres e homens na produção de um ser humano mais humano – um olhar pedagógico e teológico. Em 08-03-2007, apresentou o IHU Idéias Frida Kahlo, as mulheres e a solidariedade que se estabelece pela dor. Em parceria com outros pesquisadores, organizou a obra A graça do mundo transforma Deus (Porto Alegre: Editora Universitária Metodista, 2006). É autora de Educação popular e teologia das margens (São Leopoldo: Sinodal, 2003).

IHU On-Line – Relate algo sobre seu interesse em analisar o quadro “Uns quantos piquetitos”, e como o relaciona com a violência naturalizada a que as mulheres estão expostas?
Edla Eggert -
O interesse em analisar o quadro “Uns quantos piquetitos” surgiu a partir do momento em que eu vinha pesquisando sobre o tema da violência doméstica e da educação das mulheres para naturalizá-la. O quadro de Frida me caiu como uma luva, e mais ainda os comentários que li sobre o modo como esse quadro foi surgindo. O entorno de uma criação é fundamental para entender seu processo. No meu caso, como pedagoga, é isso que me interessou - o modo pelo qual a criação se efetivou. É vital pensar na arte como denunciadora de violências naturalizadas. Uma arte que faça impactar que é o que acontece ao vermos “uns quantos piquetitos”.

IHU On-Line - A mulher representada nessa obra é uma metáfora de Frida e das mulheres mexicanas? Por quê?
Edla Eggert -
É uma metafora dela mesma, das mulheres mexicanas e pode-se dizer das mulheres em geral: é uma violência universal. Essa violência visível dos cortes, dos roxos, dos cabelos arrancados, das mordidas, da morte. Mais ainda: é o olhar frio e gestor de violências simbólicas retratado na postura do homem impassível a observar a cena produzida. E por quê? A história é longa e generosa nos exemplos sobre os porquês das diferenças de gênero serem tomadas como inferioridades. As diferenças produziram uma ordem de culpa, por exemplo na tradição judaico-cristã, bem como as diferenças de gênero produziram uma ordem de incapacidades e inferioridades na tradição filosófica greco-romana que, somadas à tradição judaico-cristã, foram relidas no evento do iluminismo através da ciência. E, portanto, foram recriadas e se mantém produzindo violências de todas as formas. A mais visível é essa representada em obras como a de Frida, a violência física, que é o auge das outras fomentadas em dimensões e graus diferenciados.

IHU On-Line - Em que sentido essa obra expressa a atitude das instituições frente às mulheres?
Edla Eggert -
Eu vejo pelo menos dois sentidos muito fortes. O primeiro é a ironia da faixa que anuncia a notícia lida por Frida sobre aquele assassinato. O homem disse ao se defender perante o juiz que aquilo que ele havia feito eram apenas uns golpezinhos - com a idéia de fundo implícita: era só pra dar um susto! E, o outro sentido, no meu entendimento, que essa obra expressa, é o modo como o homem “fala” na postura do seu corpo. É uma denúncia da imobilização institucional. Consigo ver naquele homem o próprio sistema jurídico, às vezes ainda impassível. Consigo ver a Igreja, a escola, muitas e, muitas vezes, a própria família, e os vizinhos impassíveis à velha atitude do dito popular: em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.

IHU On-Line - A arte de Frida era uma denúncia desse cotidiano banalizado?
Edla Eggert -
Acredito que sim. Quando se estuda um pouco mais a biografia dela, vislumbra-se a solidariedade que existia entre ela e o povo mexicano. Trata-se de uma cumplicidade entre a arte popular e o povo. Neste, mesclam-se, profundamente, as mulheres que compuseram a vida de Frida.

IHU On-Line - Qual é a atualidade desse quadro frente à situação das mulheres de nossos dias? A que “golpes” as mulheres do século XXI continuam expostas?
Edla Eggert -
A atualidade é que todos os dias, quando abrimos os jornais, lemos alguma notícia que já está naturalizada: uma mulher morta pelo marido ou namorado, isso sem falar dos estupros. De maneira que a mulher ainda está longe de ser considerada, respeitada, pelo simples fato de ser mulher. O direito de ir e vir ainda é uma conquista diária. O processo de autorizar-se responsável por seus atos da mesma forma, a autoria de si mesma na produção do conhecimento segue sendo um desafio. Enfim, o século XXI está repleto de interrogações, mas está muito mais aberto ao debate que desestruturou um modo de ser mulher e de ser homem, abrindo espaço para outras possibilidades de pensar o ser humano e sua condição humana. Em muitas situações, os golpes continuam sendo violentos. Em outras situações, esses golpes são mais sutis, mas continuam existindo.

IHU On-Line - Você afirma que a partir de 1935, Frida abre-se a outras relações amorosas e lida de outra forma com o casamento. Como essa postura se anuncia em sua arte e em sua vida?́
Edla Eggert -
Digamos que é uma postura que identifico como mais autônoma. Ela passa a se colocar mais. Prepara exposições e se apresenta como ela, por ela mesma. É isso que faz com que as pessoas se assustem e/ou se admirem com ela.

IHU On-Line - Em seu artigo, você relaciona “uns quantos golpes” à política discriminatória e misógina da sociedade. Quais são as perspectivas de que essa relação privada se torne pública e que, por outro lado, seja superada?
Edla Eggert -
Não acredito que somente pela lei nós teremos realizado a superação. Creio que precisamos desse aporte. Contudo, a construção misógina somente será desconstruída por meio do processo educativo. É preciso uma política pública, sim, mas uma política que se infiltre, que mine de fato o modo como ainda estamos olhando para o que temos construído na sociedade em que vivemos. O modo como os meninos são educados a serem homens e o modo como as meninas são educadas para serem mulheres vem mantendo essa política discriminatória. Faço um esforço tremendo para acreditar nessa humanidade, mas tenho rompantes “fridalescos” de pensar algumas coisas de forma bastante trágica... não sei se vamos conseguir superar, o estrago foi muito grande... As conseqüências nós vemos por todos os lados.

IHU On-Line - Frida tinha uma beleza fora dos padrões convencionais. Como sua autenticidade pode auxiliar as mulheres a repensarem sua adesão inconteste a dietas, moda e cirurgias plásticas?
Edla Eggert -
Quando eu levo as gravuras auto-retrato de Frida para a sala de aula no curso de Pedagogia ou em outros eventos onde geralmente há mais mulheres do que homens, um comentário aparece muito espontaneamente: “Ah, mas ela pelo menos poderia esconder aquele bigode...”; “Nossa, parece relaxada...”. Então, sugiro pensarmos mais sobre os estereótipos, sobre o preconceito e sobre o que vem a ser considerado feminino e por quem é definido esse feminino. A autenticidade implica em autonomia e essa é uma conquista do dia-a-dia que me parece que nem sempre esteve acabada e totalmente resolvida na vida de Frida, mas gerava uma indignação, um contraponto muito significativo, esteticamente falando. A autenticidade se constrói com o pensamento autônomo. E, para que isso aconteça, é preciso que haja o tempo de se pensar. E, provavelmente, Frida construiu esse tempo de se pensar em longos dias acamada, ou seja, ela não teve muita saída. A pintura, o desenho e a sua vida mostram esse seu modo de pensar. Esse é um dos elementos fundamentais para que a estética se produza de outra forma para o mundo das mulheres: o tempo lento de se pensar. Os pequenos golpes voluntários das mulheres nelas mesmas a fim de estarem na moda e se sentirem aceitas só serão percebidos como golpes se elas se permitirem pensar sobre eles e sobre si mesmas. Caso contrário, o piloto automático liga e a vida corre na lógica do “ser para os outros e dos outros”, sempre em função de alguém, como bem articula a antropóloga também mexicana Marcela Lagarde y de Los Rios.

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