Edição 227 | 09 Julho 2007

Frida nos deixa sem jeito

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”Frida Kahlo é cultura como transgressão de domínios. Sua pintura, sua escrita e sua culinária estão de tal modo imbricadas que escapam dos cânones das disciplinas bem comportadas. Por isso, caracterizá-la já é uma impossibilidade; algo assim como explicar um poema.” A análise é do teólogo Vítor Westhelle, professor de Teologia Sistemática na Escola Luterana de Teologia de Chicago, Estados Unidos. Sobre a cozinha da pintora mexicana, pontua, “é uma alegoria”. E completa: “Frida nos deixa sem jeito”. A íntegra das afirmações pode ser conferida a seguir.

A entrevista foi concedida por e-mail e reflete o artigo Santa Frida com aura e aroma, escrito por Westhelle para compor a coletânea sobre Frida Kahlo, em fase de organização pela Prof.ª Dr.ª Edla Eggert.

Westhelle é graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo, mestre e doutor em Teologia pela Escola Luterana de Teologia de Chicago. De seus vários livros publicados, citamos o mais recente The scandalous God: the use and abuse of the Cross (Minneapolis: Fortress Press, 2006), cuja versão portuguesa sairá nos próximos meses pela Editora Sinodal, de São Leopoldo.

IHU On-Line - Como caracterizaria a pintura, a escrita e a cozinha de Frida Kahlo? O que elas revelam sobre seu estilo e a valorização de sua cultura?
Vítor Westhelle -
Assim como Frida escrevia com seus olhos, olhava com sua cozinha, escrevia com sua pintura e amava com um corpo rompido e que se rompia por amor (ela disse a Diego que havia sofrido dois acidentes: um foi com o ônibus em que se acidentou e o outro foi ter se envolvido com ele; e o segundo teria sido pior). Frida Kahlo é cultura como trangressão de domínios. Sua pintura, sua escrita e culinária estão de tal modo imbricadas que escapam dos cânones das disciplinas bem comportadas. Por isso, caracterizá-la já é uma impossibilidade; algo assim como explicar um poema.

IHU On-Line - Nos livros de culinária de Frida Kahlo, qual é o traço que mais chama a atenção nas receitas apresentadas?
Vítor Westhelle -
É o exótico das deslumbrantes e inusitadas combinações: pratos com carnes e frutos do mar acompanhados com verduras, junto a limões recheados com coco, e arroz em cores verde, branco e vermelho. Há sempre algo de doce nos pratos, azedo no aperitivo e apimentado na sobremesa. Sua cozinha é uma alegoria; é sempre sobre algo diferente ou distinto; descreve-a assim como ela pinta o seu diário.

IHU On-Line - Como arte e política se misturam em suas composições? Que tons, aromas e sabores se sobressaem?
Vítor Westhelle -
Walter Benjamin, um contemporâneo de Frida Kahlo, dizia que o fascismo era a estetização da política, como ainda o é. O mérito de Frida Kahlo foi distinguir sua “apresentação” da representação que dela se faz e que ela mesma fez. É precisamente esta distinção que Frida logra manter. Ainda que ela seja politicamente reproduzível, jamais se esgota. Podia fazer amor com Trotsky e no mesmo quarto monumentalizar Stalin. Ela não se “explica”. Para Frida, poiesis e praxis, arte e política eram coisas distintas, ainda que intimamente relacionadas. Assim como não se entregou à arte pela arte, tampouco rendeu sua arte à política. Este é seu gênio.

IHU On-Line - Como a arte de Frida ajuda a valorizar e revitalizar as culturas fora do eixo Primeiro Mundo?
Vítor Westhelle -
O que André Breton disse sobre o surrealismo ser nativo do México na obra de Kahlo, Alejo Carpentier  disse sobre o real maravilhoso. A diferença não é apenas conceitual. Sua obra é uma exposição do real que é ela mesma. Daí sua importância. Ela não pertence ao Primeiro ou ao Terceiro Mundo. Sua politização da arte, que, aliás, fazia até com deboche, resiste à estetização da política, seja ela qual for. Sua personalidade contraditória, suas múltiplas fidelidades e infidelidades jamais se alinham em um eixo. Mercantilizada e politizada como tem sido e como ela mesma o fez, dura só até um desconcertante encontro mais aproximado. Frida nos deixa sem jeito.

IHU On-Line - O que mais lhe toca na obra “Coluna quebrada”? Por que analisar esse quadro e o que ele revela sobre o momento em que foi composto na vida da pintora?
Vítor Westhelle -
A idéia inicial que me atraiu era o de explorar a hibridez do orgânico e do arquitetônico. Isto ainda vale outro texto. O que apresentei e achei mais imediato foi seu quebranto. O que me interessou finalmente foi a ambivalência do terapêutico e do trauma. É importante lembrar que este quadro foi pintado em 1944, no ano em que a saúde de Frida entra em rápido declínio. Ainda assim, ou por isso mesmo, há uma indecisa conflagração entre o trágico e o sacrificial. Aliás, é esta indecisão que faz Frida tão avessa a reproduções, muito embora seja isso que dela amiúde temos.

IHU On-Line - Poderia dar mais detalhes sobre sua afirmação de que a coluna quebrada exposta no quadro de Frida simboliza a coluna grega e, portanto, a decadência da civilização ocidental? A fratura de Frida nessa obra é uma metáfora para a fratura de nosso mundo?
Vítor Westhelle -
Em uma entrevista, Jacques Derrida confessou que, não obstante seu afã desconstrutivo, não se pode escapar da metafísica. Falava ele da tradição filosófica ocidental que remonta aos clássicos gregos. Frida Kahlo, meio século antes disse o mesmo nesta gravura: a civilização ocidental, do qual ela é herdeira e dissidente, é a coluna rota que a sustém em lágrimas de um irremediável quebranto.

IHU On-Line - O que você quer dizer com a afirmação de que a beleza de Frida está em expor sua dor como está exposta sua coluna?
Vítor Westhelle -
Para Frida, “expor” era um verbo intransitivo. Se havia, como houve, um objeto (um cerdo, uma coluna, lágrimas, duplicidades, cordões umbilicais, frutas, Diegos e micos) era ocasional. Era apenas a oportunidade que se lhe oferecia para expor. Ponto. Na tradição mística, há esta idéia de que alma tem dois olhos, um que vê, como vemos, a superfície das coisas, e outro que vê a essência. Quando Frida representava um terceiro olho, era isso que buscava. Mas nele aparecia apenas Diego Rivera. Era o seu segundo olho que expunha a verdade e a realidade de Frida, apesar dela mesma. É este segundo olho que lhe dava a visão que tinha, mas apenas visível pelas lentes de suas lágrimas.

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