Edição 226 | 02 Julho 2007

Perfil Popular - Noli Claudemir Backes

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Seu nome é Noli. Seu apelido é Tomé. Tem 39 anos e nasceu em Porto Vera Cruz, município da região das Missões do Rio Grande do Sul. Junto com a esposa, Senaile, estabeleceram um mercado no bairro São Miguel, em São Leopoldo, onde também residem. A vida marcada pelo trabalho e pela luta por um mundo melhor foi entremeada por um duro golpe do destino: a morte do único filho do casal, Lenon, com 16 anos. E é a fé que devolveu as forças a Noli e sua esposa, motivando-os à criação do Instituto Lenon Pela Paz, que hoje atende quase 400 crianças e jovens com oficinas que lembram a personalidade alegre e espontânea do filho. Confira a bela história de vida de Noli Claudemir Backes. 

Noli teve uma infância conturbada, cresceu em uma família humilde, do interior da região das missões gaúchas, que vivia da lavoura. “Mas sempre tive minhas ambições, desde moleque. Procurava fazer tudo o que estava a meu alcance. Mesmo muitas vezes sendo julgado, discriminado pela minha posição social”. No entanto, nunca se deixou abater por isso. Noli tem mais três irmãos: duas mulheres e um homem. A mãe já é falecida há dez anos e o pai é vivo ainda: “meu grande amigo, um paizão”, se orgulha, ao contar.

Noli começou a labuta bem cedo. Cedo mesmo. Aos quatro anos, já trabalhava “de biscate” como vendedor ambulante. “Andava com uma caixinha de papel, onde eu colocava produtos fornecidos por um comerciante da região. Era sabonete, escova de dente, aparelho e lâmina de barbear. E a gente saía na rua, oferecendo para as pessoas e vendendo. Esse foi meu início”, recorda. Dos sete aos 18 anos trabalhou fazendo vendas dos mesmos produtos gerais, porém no balcão de estabelecimentos fixos. “Sempre tive essa habilidade e sensibilidade de trabalhar com o público”, diz. Só que Noli queria mais da vida. Então, aproveitou uma oportunidade oferecida de ir para o Mato Grosso, trabalhar no garimpo. Fez uso de sua reserva financeira, e, em sociedade com outro senhor, montou um bar dentro do garimpo. “Me dei muito bem, gostei do lugar. Mas foi lá que tive minha primeira grande decepção”. Noli tinha uma namorada no sul, que hoje é sua atual esposa. Ela foi para lá e não gostou do local. “Então, ela me botou uma pressão e eu não queria perdê-la; decidi vender minha parte da sociedade e voltar para o sul”. Isso foi em 1987. O casal Noli e Senaile oficializou a união assim que retornou à terra natal. Noli trabalhou como empregado na churrascaria do sogro. Mas em meados de 1990, com o plano Collor, a diferença cambial e a inflação, a situação econômica só piorava. “Fiquei sem ação na minha cidade”, lembra ele, que já estava casado e com Lenon, primeiro filho do casal, que estava com dois meses de idade. Foi quando decidiram ir para Porto Alegre. Mas o destino decidiu que eles parariam antes. Quando o ônibus em que Noli estava (ele veio antes da família) parou na rodoviária de São Leopoldo, ele achou que já estava em Porto Alegre e desceu. O informaram que ele não estava na capital. Mesmo assim, foi buscar mais informações sobre o município. “Fui até a Câmara de Vereadores para ver o que a cidade oferecia e o que eu podia fazer. O então vereador Arion Ribeiro de Mello, hoje falecido, me explicou tudo sobre a cidade. Ele me aconselhou a voltar para minha terra. Mas eu insisti. Fui em busca de algo”. Na mesma semana, Noli arrumou emprego e conseguiu alugar uma casa. Dez dias depois de sua chegada, a esposa Senaile e o filho Lenon foram a seu encontro. Isso foi em 1990.

A batalha pelo sustento
Noli trabalhou na empresa Duratex por dez anos, enquanto sua esposa Senaile trabalhou em uma empresa chamada Mizu, que fabricava componentes para calçados. Enquanto isso, o pequeno Lenon ia para a creche. Em 1992, a família conseguiu comprar a casa própria, no bairro São Miguel, onde moram até hoje. “Era uma casinha humilde, mas fomos reformando peça por peça até ficar uma boa casa”, lembra Noli. Em meados de 1997 a empresa Mizu fechou suas portas e Senaile ficou desempregada. Então, ela pegou as reservas financeiras do casal, porque não recebeu a indenização até hoje, e abriu um pequeno comércio de R$ 1,99. Noli também vendia os produtos da loja para os seus colegas da empresa. O comércio de Senaile foi crescendo, evoluindo, e tomando conta da casa da família. “Chegou um ponto em que ficamos só com uma cozinha e um quarto”, lembra.

Em 1999, Noli e a esposa decidiram montar outro tipo de comércio: um minimercado. Senaile tocava tudo sozinha, mas logo precisou de mais gente para ajudar. Ela contratou funcionários porque o mercado evoluía, enquanto Noli continuava trabalhando na empresa Duratex e vendendo produtos como ambulante para os colegas. Foi quando chegaram à conclusão de que era necessário ampliar o mercado. Só que faltava dinheiro. A saída: negociar a demissão de Noli com a empresa para pegar a indenização. “Eu era sindicalista, mas tinha um bom relacionamento com a empresa onde eu trabalhava. A saída era abandonar meu emprego e, com o dinheiro da indenização, construir nossa casa em cima do espaço que nós já tínhamos, que seria todo para o mercado. O pessoal da empresa concordou em me demitir e conseguimos construir nossa casa encima do mercado”. Logo veio a idéia de implantarem um depósito de bebidas. E assim foi feito. “Tudo o que planejávamos e idealizávamos se concretizava”.

Uma fatalidade
Tudo ia bem até que aconteceu uma fatalidade que “empacou” a vida da família: a morte do único filho do casal, Lenon, em setembro de 2006, assassinado durante um assalto, com apenas 16 anos. Apesar da dor e do sofrimento, o perda de Lenon motivou o casal Senaile e Noli a idealizarem o Instituto Lenon Joel Pela Paz. “O falecimento dele foi no dia 18 de setembro. E já no dia 26 lançamos a idéia do Instituto para a comunidade, que apoiou muito”. Foi durante a semana farroupilha que aconteceu o incidente. Lenon não seguia o tradicionalismo, nem se vestia tipicamente, mas sempre estava envolvido nos eventos. “Como ele tinha amizade! No velório dele tinha tanta gente! Só daí que tivemos a dimensão das amizades que o Lenon tinha feito”.

Amor de pai
“O Lenon era meu menino maluquinho. Filho único, sabe? Era muito espontâneo. Fazia várias atividades no mesmo dia”. Assim que entrou na escola, o rapaz já começou a se envolver em atividades esportivas. Com nove anos já participava do Programa de Escolinhas Integradas (PEI), da Unisinos. “Ele não se contentava só com a escola e o futebol. Sempre fazia algo a mais: vôlei, futebol de salão. Vinha em casa só para fazer as refeições, trocar de roupa, e ir para outra atividade”, descreve Noli. O pai conta que nunca tiveram problemas com Lenon. Nenhuma reclamação. “Para o Lenon nada era impossível. Tentamos colocá-lo para fazer o segundo grau num colégio particular, pois ele não aceitava ficar sem estudar em função das greves do magistério na escola estadual. Mas a gente não tinha dinheiro para isso. Eu insisti com a diretora da escola que era importante para meu filho. A escola reduziu os valores, fez uma outra proposta, dentro da nossa realidade. E lá foi o Lenon. Apesar de mais pobre, se deu muito bem. Ia bem nas matérias e fez amizades com os colegas de uma classe social adversa a nossa. Ele continuou sendo humilde. O apelido dele no nosso bairro era o ‘mendigo do Tomé’. Tomé é meu apelido. Ele usava a roupa até gastar. Nunca usou um tênis de marca. Quando ia comprar um novo, escolhia o mais ralé”.

Noli confessa, de olhos lacrimejados, que às vezes a saudade e a tristeza batem. “Daí a gente desaba, mas depois passa e volta a alegria, volta o prazer de viver. Inclusive estamos pensando em mais um filho. Se Deus quiser, vai ser muito bom se isso acontecer. Mas caso isso não aconteça também vamos se contentar com o que Deus proporcionou para a gente. Eu e o Lenon, além de sermos pais e filhos, éramos amigos. Tenho convicção de que ele está muito feliz e está transmitindo força para conseguirmos tudo o que estamos conseguindo”.    

Instituto Lenon Joel pela Paz
O Instituto Lenon Joel pela Paz é uma homenagem ao jovem rapaz, que perdeu a vida vítima da violência. O pai, Noli, explica que a partir de 26 de setembro do ano passado começou o processo de encaminhamento dos documentos necessários para implantar a ONG. “Nosso bairro é muito violento, a vulnerabilidade dos jovens e crianças é altíssima, tem muita droga. Então, optamos por trabalhar com crianças e jovens, de 7 a 18 anos”. Hoje, o Instituto oferece 11 oficinas, todas ministradas por voluntários: de música (violão, flauta, teclado, percussão, etc.), capoeira, teatro, futebol, xadrez, skate, literatura e rádio. “Queremos implantar informática, pois ganhamos nove computadores. Só falta espaço”, conta Noli. A ONG tem também uma biblioteca comunitária, toda com livros doados, somando até hoje 6.800 livros. Na primeira semana de funcionamento, já havia mais de 200 jovens e crianças inscritos. Hoje são 391 crianças cadastradas e com presenças registradas. O quarto de Lenon se transformou em um “estúdio” de rádio. “O Instituto está fluindo tão bem e tão rápido que só pode ser dedo do Lenon. Para ele duas coisas não existiam: o impossível e o depois”.

Fé que dá forças
Noli conta que não ia muito à Igreja, mas que agora a esposa organizou um grupo de oração, em que todas as semanas algumas senhoras se reúnem na casa da família para rezar. “Felizmente, através dessa crença, juntamos as forças. Posso dizer que nossa fé aumentou. Cremos ainda mais que Deus existe, mesmo tendo acontecido essa tragédia na nossa vida. Sentimos imensamente e isso jamais vai se apagar dentro da gente. Mas, ao mesmo tempo, conseguimos forças, pedindo a Deus todo dia para que nos conceda a vontade de viver. Inclusive eu peço muito para que Ele não me tire essa disposição, essa espontaneidade, assim como o Lenon era. Peço que me deixe a dor, que é minha, mas me deixe minha alegria também. E vamos conseguindo. É a prova de que existe alguém superior a nós, que com certeza é Deus. Essa é a nossa fé. A minha fé”.     

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