Edição 226 | 02 Julho 2007

“Second Life é uma proposta comercial da sociedade da técnica”

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IHU Online

O Second Life, explica o professor Luís Carlos Petry, propicia “novas formas e espaços para o pensar e conhecer”. No entanto, mesmo proposto como um ambiente colaborativo, o metaverso é “assolado imediatamente pelos valores da sociedade da era do espetáculo”. O professor ressalta que as pesquisas sobre o tema ainda estão no começo e que as polêmicas no campo digital são freqüentes.

A IHU On-Line entrevistou Petry, na semana passada, por e-mail.

Luís Carlos Petry é professor e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. Ele é graduado em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É autor do livro
Estudos de Design em Hipermídia (Lisboa: Dom Quixote, 2007. Eis a entrevista:

IHU On-Line - Quais são as perspectivas que o Second Life lança para o universo digital?
Luís Carlos Petry -
Do ponto de vista de uma sociedade capitalista, elas são muitas. Veja o exemplo publicado, nesta última semana no Second Life News (http://www.second-news.net/?m=200702), no artigo “Adeus terra barata...”, que mostra que a especulação imobiliária chegou até o ambiente do Second Life, gerando modificações nas regras por parte dos seus administradores e organizadores. Do ponto de vista da simulação dentro do universo digital, o Second Life permite a reprodução de várias das estruturas presentes no mundo real, principalmente as ligadas aos processos econômicos da sociedade capitalista de consumo. Entretanto, deve-se ressalvar que os seus organizadores procuram balizar e controlar tais situações e movimentos, a partir de critérios éticos sem que, é claro, com isso o horizonte do capital seja esquecido ou mesmo descuidado.
Entretanto, se ficarmos somente neste plano apresentado, estaremos construindo uma avaliação inadequada e injusta do Second Life. Como na vida real, a chamada Real Life, as demais possibilidades humanas, não somente são possíveis mas estão presentes, ou ainda se organizando para estarem presentes e se manifestarem estética e culturalmente. Um exemplo da força expressiva culturalmente, que pode tomar um projeto do tipo como Second Life, pode ser encontrado na matéria publicada no Second News Brasil, o órgão de notícias brasileiro no Second Life. No link específico da matéria “Myst no SL” (http://www.second-news.net/?p=11), encontramos o anúncio de que poderemos encontrar uma representação da famosa Ilha de Myst no Second Life, dentro da qual, está agendada uma entrevista com um dos criadores da série de jogos culturais para computador Myst, Rand Miller. Com esta possibilidade, na qual o Second Life se dedica a homenagear o maior jogo da história da computação, o qual é dedicado a uma trama shakesperiana e responsável pela formação de milhões de jovens ao redor do mundo, seja na influência que teve em suas formações ou padrões éticos, o empreendimento da simulação digital do Second Life dá um passo importante no sentido de valorizar aquilo que existe de melhor na tradição narrativa do Ocidente. São apenas alguns exemplos das perspectivas de Second Life para o universo digital.

IHU On-Line - Sendo a recriação de uma outra vida, é possível se criar uma comunicação diferente da existente no mundo real? Quais são as possibilidades que a comunicação pode atingir dentro do Second Life?
Luís Carlos Petry -
Um novo tipo de tecnologia que é difundido dentro da civilização produz efeitos decisivos na sociedade como um todo, isto a curto, a médio e a longo prazos. Assim, o foi com a prensa de Gutenberg, com o telégrafo e o rádio, com o cinema e a televisão. Imaginar que poderia ser diferente com a WEB (o ciberespaço) não é correto nem realista. Neste sentido, o tipo de comunicação produzido dentro do universo digital do ciberespaço, utilizando o computador em ambientes virtuais, é profundamente diferente dos modos anteriores de comunicação. Ainda estamos apenas no começo das pesquisas referentes ao tema e polêmicas neste campo são freqüentes. Se tomarmos os pressupostos de Jannet Murray (Hamlet no hollodeck. São Paulo: UNESP, 2003), veremos que dois grupos básicos são constituídos na abordagem do ciberespaço (o universo digital no qual o Second Life está inserido): o primeiro deles é formado pelos utópicos, que vêem no ciberespaço um universo de possibilidades sem fronteiras e infinito; o segundo, pelos ditópicos, que, ao contemplarem o universo do ciberespaço, vêem somente a alienação e a derrocada daquilo que nos contitui como humanos. Existe uma terceira posição? Sim, é possível uma terceira posição, a qual se constitui numa posição crítica. Ela é formada pelos pesquisadores que não simplesmente observam o ciberespaço e que, além conhecê-lo e dominá-lo em sua formação conceitual, entram nele como sujeitos habilitados cientificamente a trabalhar com suas ferramentas e com a linguagem digital da hipermídia e dos jogos. Esta posição, pautada por uma formação crítico-humanista e uma formação técnica e artística, muitas vezes contribui para o desenvolvimento de perspectivas de comunicação e produção que mostram que o ciberespaço pode ser muito mais do que uma vitrina de compras, um correio eletrônico, uma sala de bate-papo, mas um lugar no qual o conhecimento pode ser desenvolvido de forma cooperativa. Creio que falar das potencialidades dos e-mails até as videoconferências seria falar do ciberespaço e do Second Life como simples reprodutor do mundo real no qual nascemos e vivemos. O desafio seria propormos o universo da simulação do Second Life, dentro de propostas que visam à produção de obras colaborativas, nas quais avançamos em nossas capacidades de produção narrativa e, finalmente, de conhecimento. O incipiente ingresso de universidades no Second Life, depois de superadas as pretensões capitalistas com os lucros, pode contribuir muito neste sentido.

IHU On-Line - Que tipo de pensamento filosófico podemos formar de um ciberespaço como o Second Life?
Luís Carlos Petry -
Eu creio que a questão aqui pode ser um pouco precipitada, na verdade colocando uma ênfase e um relevo nesta proposta de Simulação (Second Life) que não é pertinente a ela, muito menos merecida. Se formos perguntar por propostas filosóficas do pensar no ciberespaço, o Second Life deve ser tomado como um caso menor, de pouca relevância. Aqui precisaríamos de uma ampla revisão e comentário para podermos dar contas do processo. Gostaria de começar com um exemplo muito interessante e, em muitos aspectos, mais relevante do ponto de vista filosófico e da produção do conhecimento que o Second Life. É o caso do ambiente virtual de simulação, chamado True Place, produzido pela empresa de modelagem tridimensional que é desenvolvedora do software de modelagem 3D True Space 3D Calligari (http://www.caligari.com/Products/trueSpace/tS75/Brochure/truePlace_intro.asp?SubCate=S2intro ). A proposta do True Place é, desde o começo, trazer um lugar de aprendizagem, de cultura, dentro do qual você pode ampliar seus conhecimentos de 3D e introduzir inúmeros aspectos da cultura: sala de exposições artísticas de seus trabalhos, bibliotecas, ambientes de jogos e, inclusive, uma arena grega de diálogo das comunidades. Outro aspecto que pode ser observado é o referente à  qualidade estética do True Place: ele é dezenas de vezes superior ao encontrado no Second Life. Seus ambientes são de qualidade gráfica, do ponto de vista da modelagem tridimensional superiores, posto que aceitam um maior número de polígonos e de texturas mais elaboradas. Mas as qualidades do True Place não são suficientes para torná-lo mais conhecido que o Second Life. Aqui entra em jogo os elementos subjetivos da proposta que são confrontados com a sociedade capitalista. True Place tem na sua base uma proposta educacional, uma perspectiva didática e um interesse na cultura diversificada do ciberespaço, enquanto que o Second Life, mesmo que proposto como ambiente colaborativo e participativo, é assolado imediatamente pelo valores da sociedade da era da reprodutibilidade técnica e do espetáculo.

IHU On-Line - Como as teorias psicanalíticas compreendem as novas linguagens formadas a partir do ciberespaço, nesses novos jogos digitais?
Luís Carlos Petry -
Eu penso que a teoria psicanalítica em geral, e a lacaniana em particular, tem muito a oferecer ainda para uma melhor compreensão do mundo digital e do homem que nele participa. Entretanto, este processo de compreensão demandará um certo tempo ainda, para que realmente seja frutífero e, o surgimento de pesquisadores que possam cada vez mais unir recursos e conhecimentos de ambos os mundos. Tratam-se daqueles pesquisadores que tenham um amplo conhecimento de ambas as áreas: da psicanálise e do mundo digital. Nestes momentos, eu sempre lembro de uma frase de Wittgenstein que disse em algum lugar: "Se os leões tivessem linguagem, nós não os compreenderíamos". Isso quer dizer que nós e os leões estamos talvez ocupando, em algum momento, o mesmo espaço físico, mas vivemos, na realidade, em mundos diferentes. O mundo do ciberespaço, enquanto extensão do mundo real, como no caso do Second Life, se constitui apenas numa espécie de expansão na qual as nossas qualidades e patologias podem ser expressas e, muitas vezes, amplificadas. Mas prestar atenção somente às patologias presentes no ciberespaço, procurando analisá-lo de acordo com a psicopatologia, mesmo que esta seja fundamental, é cair num erro reducionista que está presente em muitos artigos eruditos e de qualidade. É esquecermos a Wikipédia, o You Tube, o Uru Live, os Museus Interativos, como genuínas expressões da qualidade humana nos seus melhores aspectos. É esquecermos que temos projetos no ciberespaço como D´ni Museum Of Art (http://www.kater.sadji.de/museum/archiv.php?month=3,2005), o projeto colaborativo Ilathid ( http://ilathid.bluegillweb.com/), os projetos de poesia digital (como, por exemplo, em http://www.telepoesis.net/) e, inclusive, o projeto que desenvolvo pessoalmente na WEB como Pedro Babora, de Portugal, o AlletSator (http://www.telepoesis.net/alletsator/). Ora, todos os projetos aqui citados passam, em um momento ou outro, pela grande influência que a psicanálise tem na formação da cultura da segunda metade do século XX, da qual somos filhos e, por um continuado recurso à tradição histórica que nos legou o Ocidente, desde os gregos. Neste sentido, eu penso que muito ainda precisa ser feito, no que diz respeito a termos uma base conceitual verdadeiramente sólida para uma compreensão do mundo digital, na qual se conte com a psicanálise. Mas isso não significa que não existam trabalhos realmente interessantes que apontam para direções frutíferas. É o caso das publicações de Sherry Turkle, em The life on the screen (1997), na qual utiliza muito da teoria lacaniana para a compreensão da hipermídia e do ciberespaço e de seu  livro, The second self (2005). Exemplos de pesquisa como estas podem servir de parâmetro para uma abordagem frutífera do universo digital, perspectivas de abordagens não quais não nos sintamos como leões falando do universo dos humanos.

IHU On-Line - Como o senhor relaciona a programação de autoria das hipermídias com as modelagens criadas a partir de mundos tridimensionais (que, no caso, o senhor chama de topofilosofia)?
Luís Carlos Petry -
A programação de autoria e a modelagem tridimensional, tal como as defendi em meu livro com Sérgio Bairon e nos textos e artigos que tenho publicado, estão relacionadas com a produção de conhecimento, isto tomando por eixo a relação entre arte e ciência, defendida por Hans-Georg Gadamer , em Verdade e Método 1. Como pesquisador, eu defendo que arte e verdade, a partir de uma compreensão fenomenológico-hermenêutica, são inseparáveis. Neste caso, a partir da influência da filosofia heideggeriana e gadameriana do corpo plástico e da concepção da estrutura do ser como topológica, acrescida de inúmeros elementos da topologia lacaniana, a topofilosofia, conceito de Michel de Certeau  (a partir de sua leitura de Freud ), se constitui em uma linha de pesquisa que busca pensar os modos de ser da produção de ambientes e objetos tridimensionais imersivos e interativos, dentro do ciberespaço, como possibilidade de produção e transmissão de conhecimento. Se concordarmos com Gadamer, por exemplo, que o objeto da obra de arte fala ao homem naquilo que tem de mais essencial, é correto dizermos que o objeto digital tridimensional no ciberespaço igualmente diz algo ao homem que tem ouvidos para escutá-lo, muito antes de tratá-lo como simples ruído ou ilustração.

IHU On-Line - As novas tecnologias podem formar um novo modo de pensar? Que novas formas espaços como o Second Life pode conceber?
Luís Carlos Petry -
As chamadas novas tecnologias, em seus casos particulares de programação de autoria e modelagem tridimensional, participam dos modos de pensar do homem. Dizermos “um novo modo de pensar” é, muitas vezes, ou uma licença poética ou uma tentativa de chamar a atenção para as possibilidades expressivas da sintaxe e da semântica que os novos meios permitem. Neste caso, trata-se de, ao mesmo tempo que se preserva a importância do primado da ilustração conquistada no século XIX, buscar recuperar os elementos soterrados pela era da técnica, tal como a junção entre o escrito e a imagem, presentes no uso antigo do graphéin grego. Penso que não se deve jamais pensar numa recusa, por exemplo, da tradição do livro. Todas as perspectivas que incidem nisso caem no irracionalismo. Mas trata-se, sim, de buscarmos uma recuperação, uma espécie de desoterramentos da imagem que estavam impedidos para nós dentro da academia e, como pretendia Heidegger , fazer com que elaboremos uma resposta à técnica à sua altura. Mas não creio que o Second Life, como já deixei nas entrelinhas acima, seja o elemento mais importante e frutífero nesse campo de propiciar novas formas e espaços para o pensar e conhecer. Aliás, como experimento efetivo, ele é inferior a muitos outros já existentes antes dele.

IHU On-Line - O Second Life pode mudar a nossa forma de pensar e viver em sociedade?
Luís Carlos Petry -
Não. Lembramos que Second Life é, na realidade, uma proposta comercial da sociedade da técnica. Mas o que está mudando, no nosso modo de pensar e encarar a relação de trabalho intelectual, são exemplos digitais, como o apresentado pela Wikipédia (www.wikipedia.org.br), dentro do qual, progressivamente e a partir de regras éticas de trabalho, grupos de humanos se empenham em estruturar e registrar o conhecimento da tradição para todos, tanto para as futuras gerações como para quaisquer interessados. Se pretendemos entender os mecanismos e ações que estão modificando o modo de pensar e viver do homem em sociedade, devemos procurar em exemplos livres, chamados de Comunidades Open Source, ligadas aos acordos GNU e, inclusive, projetos comerciais como, por exemplo, a Comunidade DAZ (www.daz3d.com), na qual são praticadas referências econômicas muito diferentes daquelas do mundo capitalista selvagem, no qual estamos inserido. Mas o Second Life não apresenta, de fato, tanta expressividade como a mídia de massa tradicional tem, neste sentido, tentado colocar.

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